ORGANIZAÇÃO: RITA DA NOVA | REVISÃO: MARIA BRAVO | TEXTOS: CATARINA RODRIGUES, CÉLIA CORREIA LOUREIRO, CRISTINA DRIOS E GABRIELA RUIVO | IMAGEM: CÉLIA CORREIA LOUREIRO
O segundo mês do ano é adentramento, é tempo e paciência para termos mais critério em relação a tudo o que, em janeiro, nos parecia ser possível. Talvez por isso, fevereiro seja mais propenso ao risco, a levar a cabo vontades há muito guardadas no peito.
«Quem não assume os seus riscos nunca poderá ser livre.» É assim que começa o primeiro de quatro textos que versam sobre o momento em que o salto se torna necessário, incontornável. O salto e a queda, claro, já que não existem um sem o outro. Mas também aqui se fala do seu inverso, de quando arriscar é relegado para o plano dos sonhos, de quando a coragem se prova insuficiente.
Seja em que versão for, esperamos que corram pelo menos o risco de mergulhar nas palavras destas escritoras. Suspeitamos de que não se arrependerão.
Clube das Mulheres Escritoras
Quem não assume os seus riscos nunca será livre
Por Catarina Rodrigues
As grandes conquistas nascem de saltos. Nascem de quedas. Quedas sucessivas de quem saltou, caiu e, mesmo assim, continuou a andar.
«Quem não assume os seus riscos nunca poderá ser livre. Lembra-te disto.» Disse-me, um dia, o meu avô enquanto fumava um cigarro e dava um gole no café com cheirinho. A conversa que tivemos naquela tarde acompanhou-me durante muitos anos. Lembro-me de que era uma miúda com medo. Tinha medo de fazer más escolhas e não conseguir voltar atrás. Como se todas as grandes decisões fossem irremediáveis. Que curso escolher? Com quem casar? Que carro comprar? Até as pequenas escolhas quotidianas me atormentavam. Perguntava-me sempre se poderia ter feito diferente. Escolher melhor. O «e se…?» era mais tentador do que a caixa de Pandora.
─ Mau! Mas és uma mulher ou és um rato? Não podes ter medo de viver — disse-me o meu avô. ─ Jogar pelo seguro é estratégia de quem não quer ser melhor que a velha criatura. Temos de assumir os nossos riscos.
Escutava-o com a mesma atenção de quem escuta um cientista ou alguém muito importante. Na altura, gostava de ter escrito os pormenores da nossa conversa num bloco de notas, mas não foi preciso. Lembro-me de todos. O sítio, as pausas para o café ou o cigarro. O sorriso de quem nos compreende, mas nos quer puxar para a frente. O meu avô era um homem prático. Um homem que trabalhava a terra. Tinha apenas a quarta classe e o exame de admissão. Não houve nenhuma palestra nem aula, em todos os anos da faculdade, que me tenha inspirado tanto como a que tivemos naquela tarde.
─ Nunca serás feliz se não assumires riscos. O risco de avançar e tropeçar. Declarar o amor e ser rejeitado. Abraçar e ficar de braços vazios. Ter uma ideia nova e ser descartada — continuou o meu avô.
─ Vai ser sempre assim? — perguntei-lhe.
Ele sorriu e deu mais um gole no café antes de continuar.
─ Ninguém gosta de ficar de braços vazios. De braços, mãos e coração vazio. Dói muito. Mas é um risco diário que se corre. Estamos sempre sujeitos a receber a rejeição.
Só mais tarde é que compreendi. Quem não tem medo da rejeição é verdadeiramente livre. Livre para ser. Quem é livre, mesmo rejeitado, continua em frente. A assumir os riscos. As grandes conquistas nascem de saltos. Nascem de quedas. Quedas sucessivas de quem saltou, caiu e, mesmo assim, continuou a andar. As grandes conquistas não nascem de quem fica parado à espera de que se a sua sorte se concretize. «Que Deus lhe faça o favor de viver a sua vida.» Acusamos Deus de não nos dar o que merecemos, de nos testar com grandes provas. Gostávamos que Ele fizesse tudo por nós. Que desse os passos que só nós podemos dar, descartando toda a nossa responsabilidade. Seria mais fácil assim? Nem Deus nos pode fazer felizes se não dermos o primeiro passo. Creio que Ele nos desafia. Nós é que somos pouco ambiciosos.
As nossas escolhas são mais imperativas que o amor e o destino.
Quem tem a responsabilidade de dar o primeiro passo? A responsabilidade é de quem quer ser feliz.
As grandes conquistas não nascem de quem fica em casa. Mas de quem sai à rua. De quem viaja pelo mundo. De quem se deixa deslumbrar e encantar. De quem assume o risco de viajar sem retorno seguro.
─ Não te queixes. Não passes a vida reclamar, ali como o Zé Esteves dos Correios. Parece que todos lhe devem e ninguém lhe paga. Isso é fácil. Qualquer um faz e ainda se acha esperto por fazê-lo – disse o meu avô. — Assumir riscos é tomar uma posição. Enfrentar de frente. Há sempre um risco em todas as decisões que tomamos.
Enfrentar a adversidade. Cumprimentá-la como uma velha amiga. Companheiras de viagem. Nada do que temos é garantido. Só o caminho. O risco diário de perder. O risco que todos corremos até ao dia em que a terra nos há de aconchegar.
─ Não tenhas medo. Tem medo apenas de ficar presa. Amarrada ao animal de antigos hábitos. Assumir riscos é estratégia de quem procura a felicidade. Eu queria mesmo muito que fosses feliz, bonequinha.
Breviário da Felicidade
Por Célia Correia Loureiro
E pintar, sim, pintar sempre, mas nos tempos livres. Viver a vida que sempre quis viver nas entrelinhas da vida que queriam que vivesse.
Julguei que houvesse ternura quando ele exibia os meus óleos aos amigos, se por acaso iam jantar lá a casa. Havia um orgulho contido, racional, em apresentar-lhes um galgo campeão de corridas, tolhido pelo adestramento, cingido ao seu canto junto à lareira. Algures entre o digestivo e o pratinho de queijos franceses, alguém apontava a tela na parede com o polegar, envolta numa moldura dourada, e perguntava onde o tinha comprado. Não quem pintou, não de quando era, que escola seguia, mas onde havia sido comprado. O onde servia para obter a informação pretendida: quanto? Nada, já então os meus quadros nada valiam. O meu pai ajeitava o colarinho da camisa quando dizia que era da minha autoria, que a filha tinha jeito para uns rabiscos. Passatempo caro, ultrapassado, fazia questão de acrescentar. Caro, porque era esse o idioma à essa.
Com os computadores, de que serve um óleo sobre tela? Riam-se as vozes, sem um novo olhar ao quadro acima das suas cabeças. Ainda por cima cheira mal, cheira à toxicidade da classe trabalhadora, de unhas quebradiças, encardidas, o cabelo permanentemente preso, o avental manchado. Para quê inscrever-me em Belas-Artes? Se já sabia pintar, se sempre tinha pintado? O que me faltava saber, produzir, para pôr de lado essa fase terrível, infrutífera, de artista amadora? Belas-Artes, o curso dos falhados, de quem não tem um cérebro matemático nem competência para singrar em Arquitetura. E mesmo Arquitetura, esse curso de tantos, não podendo ser um Siza, para quê perder nele o meu tempo? Se nunca Veneza, para quê a Reboleira? Porque não aprender a gerir, a multiplicar? Fortunas, acções, fundos de investimento. Cultivar boas relações, filiar-me ao Partido. O Partido, que eu tanto abomino. E pintar, sim, pintar sempre, mas nos tempos livres. Viver a vida que sempre quis viver nas entrelinhas da vida que queriam que vivesse.
Pois bem, entrei em Belas-Artes. Desisti de Belas-Artes. Não fui capaz de suportar a crítica diária, comezinha, que o meu pai proferia num silêncio condenatório entre uma garfada e outra, ao jantar. Os seus olhos, que nunca me encontravam. E eu, para quem a Arte sempre havia sido tudo, a deambular tristonha pelos corredores da faculdade, a pasta debaixo do braço, a achar tudo em vão, tudo efabulado pela alegria de pintar enquanto criança, enquanto jovem, sem que disso tivesse de chegar estatuto, elogio ou fama.
Agora, sentada diante do cavalete, lamento as décadas que perdi a tentar agradar-lhe. A esse pai que apenas queria ver-me feliz, mas cujo breviário da felicidade era bastante diferente do meu. Uma vez morto, entre riscos e rabiscos, traço-lhe o cenho a carvão, a boca solene que nunca proferiu palavrão. Trago-o na mente, nítido, como se tivesse o seu retrato entre os joelhos, como se ainda tivesse de olhar para baixo sempre que estivesse na sua presença.
O murmúrio do carvão atravessa-lhe o sobrolho, ensombra-lhe o olhar. Esbato-o com o dedo, embora o preto deva permanecer treva, e é curioso como uns olhos azuis podem ser tão negros. Depois, com a borracha, trago-lhe luz ao olhar. Um brilho que nunca lhe vi e que, com certeza, ele nunca sentiu. Uma expressão que ainda me julga, e que há de julgar-me eternamente. Volto a pegar no carvão, atenta a essa ausência de cor, a essa sugestão de vida e, com um último risco, apago-a.
A Queda
Por Cristina Drios
Olhou-o com um quase nojo, nunca quisera aquele filho, fora um erro, um descuido que pagara caro, de que não poderia nunca livrar-se: agitava-se de roda dela com um esgar tolo, na sua alegria ofensiva.
«Hélas! Il sʼest rompu le cou.»1
La chute dʼHabacuc et autres nouvelles, Eriks Adamsons
Mudo, haviam decretado os médicos em conciliábulo, todavia, sem detetar qual o problema concreto da criança.
Ema ouvira o veredicto puxando a alça da camisola que o filho vestia, quieto, Habacuc, ouve o doutor, fica quieto, por favor. Hirta, também ela muda, sem entender, até se sentir mal e desfalecer no chão branco do hospital. Acordou com uns salpicos de água na cara sob o olho espantado do miúdo e da enfermeira, um de cada lado, recompondo-se devagar.
Olhou-o com um quase nojo, nunca quisera aquele filho, fora um erro, um descuido que pagara caro, de que não poderia nunca livrar-se: agitava-se de roda dela com um esgar tolo, na sua alegria ofensiva. Fechou os olhos de novo, desejando, já que não podia matar o mudo, morrer ela própria ou, pelo menos, voltar a cair no sono, num torpor absoluto, para sempre.
Todas as manhãs, Ema arrastava o filho até ao infantário, as pastas e a marmita numa mão, o miúdo na outra, no meio da multidão que a boca do metro consumia e regurgitava, ela própria em passos apressados, o horário de entrada no emprego como uma guilhotina. Saíra não se sabia a quem, esse miúdo sem pai, de pele branca e sardas nas bochechas, andava sempre distraído, sugando o mundo em redor com os olhos esbugalhados, puxando a mão da mãe na direção oposta à correcta, seguindo o voo errático do boneco azul e vermelho que segurava na mão livre. Como nunca largava o pequeno boneco de plástico, ganhara no infantário a alcunha de Super-Homem.
Seguiam atrasados. Naquela manhã de chuva, como se o mau tempo empurrasse as pessoas para o abismo, um homem caíra na linha do metro, causando perturbação na circulação, para transtorno de toda a gente. Caíra ou atirara-se? Ema testemunhara a cena, sem compreender o que acontecera, com aturdimento, sensação recorrente na sua vida. Ouvira-se o som da composição em crescendo ao fundo do túnel e os passageiros aglomeravam-se já no cais quando o homem, à beira da plataforma, mesmo à frente dela, dera um passo — um único passo — e precipitara-se no fosso, despenhando-se com um baque no chão de cimento e carris.
Alguns passageiros tinham corrido para a boca do túnel, a gritar e agitar os braços, num frenesi, tentando alertar o maquinista. A composição conseguira parar, rangendo, a um palmo do homem. Ema gelara, segurando com força a cabeça do filho contra a perna, para que este não assistisse ao trucidamento. Largou-lhe a cabeça com brusquidão logo que percebeu que a composição se imobilizara e o homem se salvara por milagre. Ainda angustiada, fazia o miúdo voar atrás de si, salvando-se da confusão. Largou-o no infantário, atirado para o meio das outras crianças, e correu para o emprego, sem olhar para trás.
O chefe acabara de a convocar para uma reunião quando o telemóvel tocou. Ema olhou para o visor, reconheceu a origem da chamada e hesitou entre correr para a sala de reuniões e atender. Em fúria, carregou na tecla vermelha. Quando regressou da reunião, uma hora passada, verificou cinco tentativas de contacto, todas do infantário. Molemente, retribuiu, mas dessa vez foi ela quem não foi bem-sucedida. Não era certamente, pensou com peso na consciência, uma boa mãe. Antevia já os olhares reprovadores das educadoras e das outras mães. Nunca seria uma boa mãe, aliás, odiava ser mãe daquele mudo. Devia tê-lo dado para adoção à nascença, esse enjeitado.
O telemóvel voltou a ranger daí a cinco minutos. A voz do outro lado foi clamorosa, era uma urgência, Ema que viesse imediatamente.
Quando chegou ao hospital, Ema foi logo encaminhada pela enfermeira para a ala pediátrica. Está tudo bem, foram apenas escoriações, disse a sua conhecida, um milagre. No infantário, o miúdo atirara-se do terceiro andar, convencido dos seus poderes sobre-humanos, acabando enredado no estendal da roupa do andar de baixo, de onde tinha sido resgatado com um simples lanho na testa. Foi então que a enfermeira disse, virando-se para Ema, e agora desatou a falar...
Numa das camas, o filho recebeu-a com um largo sorriso e o Super-Homem na mão. Tantos milagres num só dia, pensou Ema, e desfaleceu outra vez no chão branco.
Alerta Vermelho
Por Gabriela Ruivo
Sim, repare, a Verdade é algo inatingível. Posso apenas dar-lhe a minha visão das coisas, a minha perspectiva dos factos, a Minha Verdade.
«Jura dizer a Verdade, Toda a Verdade, Nada Mais que a Verdade?»
«Qual delas?»
«Perdão, como disse?»
«Eu disse, qual Verdade?»
«Qual Verdade?!»
«Sim, repare, a Verdade é algo inatingível. Posso apenas dar-lhe a minha visão das coisas, a minha perspectiva dos factos, a Minha Verdade. Mas outra pessoa terá necessariamente outra visão desta questão, que pode ou não concordar com a minha, e nem por isso deixa de ser Verdade. É apenas Outra Verdade... Posto isto, penso que não posso jurar...»
«Perdão, o senhor está num Tribunal! Está a Desrespeitar as Regras...»
«Desculpe a minha insistência, mas estaria a desrespeitá-las se jurasse dizer uma coisa que não posso...»
«O seu Testemunho vai ser Anulado!»
«Mas não está a perceber que...»
«Silêncio, Não Me Interrompa! Eu vou repetir a pergunta, e o senhor vai responder-me: jura dizer Apenas a Verdade, Toda a Verdade, Nada Mais que a Verdade?»
«Mas como quer que jure uma coisa que não posso...»
«O senhor está a Gozar Comigo?»
«Não, Eminência...»
«Responda: jura dizer Apenas a Verdade, Toda a Verdade, Nada Mais que a Verdade?»
«Mas... se jurar estarei a Mentir, não percebe?»
«O senhor está Doido? Não pode estar com esses Disparates num Tribunal! A sua sorte é que Sua Excelência O Dr. Juiz é meio surdo...»
«Mas quer que minta?»
«Jure, jure de uma vez e cale-se com isso!»
«Mas não posso jurar com uma mentira!»
«As pessoas já estão a murmurar, cale-se, homem! O Juiz é Surdo, mas não é Parvo!»
«Ordem no Tribunal! O que se passa?»
«Hum... nada, Excelência... temos aqui uma Questãozinha Ética.»
«E do que se trata?»
«Este senhor diz que não pode jurar.»
«Não pode jurar?»
«Não, Sr. Dr. Juiz. Não posso jurar dizer Toda a Verdade.»
«Porquê?»
«Porque posso apenas dizer a Minha Verdade.»
«A Sua Verdade?»
«Sim.»
«A Verdade é sua? Como é que a Verdade pode ser sua? Comprou-a?»
«...»
«Olhe, meu caro senhor, a sua sorte é que eu até sou uma Pessoa Bem Disposta. A Verdade, meu caro senhor, é um Valor Absoluto, Inquestionável, Não Pertence a Ninguém. Faça lá a Jura e vamos ao que interessa.»
«Não posso, Sr. Dr. Juiz...»
«Não pode porquê?»
«Precisamente, Sr. Dr. Juiz, por discordar dessa sua interpretação dos fact...»
«Discordar? Mas como se atreve a discordar da Palavra De Um Juiz Em Plena Sessão De Tribunal? Sabe que está a Desrespeitar A Ordem e A Honra Deste Tribunal? E que por causa disso pode ser Preso?»
«Mas, Sr. Dr. Juiz, estava apenas a tentar explicar o meu ponto de vista de que a Verd...»
«Aqui o seu ponto de vista Não Interessa Para Nada, O Que Interessa é o seu Testemunho, e para isso tem de fazer o Juramento. Ponto Final.»
«Mas se jurar estarei a mentir...»
«A Mentir? Mas que conversa é essa? Não pode Mentir num Tribunal, não sabe que é considerado Crime? Se Mentir vai Preso...»
«Então não posso jurar!»
«Basta! O senhor está a Desrespeitar Publicamente a Honra deste Tribunal! Temos Testemunhas Suficientes na Sala. Guardas, LEVEM-NO!»
«Infelizmente, partiu o pescoço!»