ORGANIZAÇÃO: RITA CRUZ | REVISÃO: RITA DA NOVA | TEXTOS: CÉLIA CORREIA LOUREIRO, FILIPA FONSECA SILVA, MAFALDA SANTOS E RITA DA NOVA
O amor escasseia nos dias que passam. Precisamos de mais amor.
Mas que amor? O que vem em cartas e é dado em rosas? A Filipa Fonseca Silva revisita-o, e lembra que esse — que neste dia que nos lêem dá dinheiro como tanta coisa que se usa e descarta, se consome rápido e deita fora —, às vezes encontra uma desculpa para o contrário: humilha e fere. Muitas vezes, sem outra desculpa ou explicação, também acaba, como regista a Célia Correia Loureiro. Seca, riacho num Verão sem chuva, árido das promessas de início, incapaz de saciar qualquer coisa que não se entende.
Que amor “líquido” é esse, cuja verdade nos escapa entre os dedos quando o achamos sólido, indivisível. Mesmo a meia laranja, de que fala a Rita da Nova, afinal também se divide em vários gomos de mentira e, espremida, volta a ser líquido que aumenta a sede.
Talvez precisemos de re-pensar o amor e de deixar o ver onde não está, nesses impostores que deles se disfarçam, no carnaval das nossas vidas. Que este dia seja ocasião para o fazermos e não apenas para o celebrarmos de olhos vendados e dedos molhados.
Boa leitura e, sem ironia nem maldade, feliz Dia de São Valentim,
Clube das Mulheres Escritoras
Dia de São Valentim
Por Filipa Fonseca Silva
Nos dias que correm, décadas passadas sobre aqueles bancos de escola, o amor declara-se por mensagens de WhatsApp. Amor Líquido, que nos escapa entre os dedos.
Hoje não vou receber rosas. Nem bombons. Nem um jantar à luz das velas.
Também não vou encontrar uma carta de amor na caixa do correio, nem um mísero postal em tons de rosa e vermelho, com o interior já escrito para que o remetente não perca muito tempo a encontrar as palavras certas, como se houvesse palavras certas para dizer o que se sente.
Na verdade, não é só hoje. Nunca recebi uma carta de amor. Nem mesmo quando, nas aulas de inglês, havia a tradição estúpida de enviar cartas anónimas entre turmas. «Let’s celebrate Valentine’s Day», anunciava a teacher, inundando-nos durante uma semana com vocabulário da época. «Heart, diferente de art, atenção à pronúncia.». E nós a escrevermos My sweet Valentine, seguido de um chorrilho de lamechices cheias de erros ortográficos e declarações infantis. «E quem não quiser enviar?», perguntava eu, as mãos suadas, a vergonha a apertar-me as entranhas só de imaginar o que seria se o Samuel descobrisse que eu gostava dele. O Samuel era dois anos mais velho e jamais olharia para mim, uma gorda cheia de borbulhas na testa e cabelo oleoso, por mais que o lavasse. O Samuel namorava com uma das miúdas mais giras da escola, daquelas que parecem saídas da capa de uma revista mesmo quando vestem umas singelas calças de ganga e uma T-shirt branca. Eu tentava imitá-las, mas parecia sempre um trambolho, com os refegos pendurados na cintura e as mamas demasiado grandes, espalmadas pelo soutien demasiado pequeno. «Todos têm de enviar. Conta para a nota», respondia a teacher, com um sorriso que a mim me parecia maquiavélico, como se lhe desse prazer a nossa humilhação. Sinceramente, qual era a graça daquilo?
E o pior nem era escrever uma carta de amor em inglês para enviar a um miúdo qualquer, inventando uma caligrafia para que ninguém conseguisse descobrir quem era o remetente. O pior era quando, na aula seguinte, a teacher distribuía as cartas que a nossa turma tinha recebido. As meninas bonitas, encantadas, algumas recebendo mais de que uma. Corações de cartolina, papel perfumado, confettis… e o meu nome nunca era pronunciado.
Minto. Houve um ano em que recebi um poema:
Roses are red
Violets are blue
Whales are fat
And so are you.
Havia sempre algum engraçadinho, que enfiava mensagens maldosas na caixa das cartas, sem que os professores se apercebessem. E nem assim alguém achou melhor acabar com a brincadeira.
Quero lá saber. Como disse Álvaro de Campos, «todas as cartas de amor são ridículas» e, nos dias que correm, décadas passadas sobre aqueles bancos de escola, o amor declara-se por mensagens de WhatsApp. Amor líquido1, que nos escapa entre os dedos. «Amo-te» e muitos emojis com corações e carinhas sorridentes a mandar beijinhos.
Suponho eu. Nunca ninguém disse que me amava. «Gosto de ti», ouvi muitos; «quero-te», também, sobretudo quando deixei os quilos a mais enterrados na adolescência, trazendo para a vida adulta apenas as boas mamas. Mas nunca um «amo-te». Será que só as mulheres bonitas o ouvem de vez em quando? Ou fui eu que fiz sempre as escolhas erradas?
Quero lá saber. Essa «chama que alenta e consome»2 é uma invenção dos Românticos. Já está duzentos anos ultrapassada. Tal como este dia estúpido, com origens que remontam a mitos cristãos e pagãos, antigos e medievais, tudo misturado, capitalizado por uma americana que só queria vender postais. Espero que tenha morrido afogada em cartas, as pontas dos dedos cheias de cortes de papel.
Roses are red
Violets are blue
I hope you burn in Hell
And take this day with you.
Nota Sobre o Fim
Por Célia Correia Loureiro
O amor que acaba como um decreto. Acabou. Nada a fazer. Há outra pessoa que o faz feliz. A família continua, sem ele.
Ontem, na minha cozinha, o meu irmão confessou à minha cunhada que está com outra pessoa. Foi das cenas mais tristes a que assisti na vida. O fim do amor. Ela, que nunca se confessou a mim, a levantar os olhos chorosos para os meus. Os lábios apertados, o peito em alvoroço. Ela, sentada num banco frágil e improvisado, com a cabeça atirada para trás, a chorar em silêncio. Ele atrapalhado, a tremer, a querer ajudá-la — indo buscar-lhe algo para comer, servindo-lhe café, levando-a ao carro debaixo do chapéu-de-chuva, beijando a testa da menina. Um esforço coletivo para que as crianças não passassem da sala, não vissem a provação silenciosa da mãe na cozinha. Uma bolha de ternura, mas já nada de amor. Ela, com o nariz vermelho, a trocar pormenores práticos sobre as crianças com ele, por entre as lágrimas de um amor acabado. Foram as lágrimas mais dignas a que jamais assisti, e nunca esperei nada digno dela, porque é jovem, inconsequente, por vezes ignorante. Esperava gritos e ofensas. Esperava acusações. Esperei que me dissesse que eu já sabia e que era cúmplice. Em vez disso, foi pura introspeção, puro desalento. Uma mulher de vinte e poucos anos, de olhos verdes, cabelo comprido, com uma filha à anca, a despedir-se do homem que ama sem um beijo, um abraço. A mão a demorar-se no cocuruto do menino que, por essa noite, fica com o pai. O coração partido dentro do casaco, na ponta dos dedos pálidos, o Natal que se aproximava, inclemente.
O carro partiu, a chuva continuava e eu apressei o menino para o interior. O meu irmão permaneceu lá fora, de mãos nos bolsos. Fumou um cigarro. Deixei-me ficar na marquise enquanto o menino via televisão, a mãozinha a tentar equilibrar o recheio da sanduíche entre as duas fatias de pão. Um doce, este menino. Lá fora, o homem debaixo do chapéu, o cigarro atirado para o lado, a rua vazia.
O amor que acaba como um decreto. Acabou. Nada a fazer. Há outra pessoa que o faz feliz. A família continua, sem ele. Será que há agora duas famílias? E o que é isto de um homem ser honesto, de se virar para a mãe dos filhos, com os cotovelos apoiados no balcão, e dizer, simplesmente, «Já não gosto de ti»? Como se sentisse muito — e sente — lamentasse muito — e lamenta —, mas não houvesse nada a fazer (não há)?
E que dor é esta que a outra pessoa guarda no peito, que range e geme e estala, mas nunca é vocalizada, nunca explode, nunca desafina? A dor de saber que, algures, enquanto a rotina decorria, deixou de cativar, deixou de produzir afeto na pele do outro? Deixou de causar ânsia e tremuras?
Ele voltou para dentro. Encolheu os ombros quando me olhou. A tristeza nos olhos dele era a tristeza que eu vira nos olhos dela. Tanta tristeza.
O amor acabou. E não há nada a fazer.
Duas metades de uma laranja
Por Rita da Nova
Ninguém lhes mandou tirar o amor do peito e andar a exibi-lo ao mundo, mas eles não aguentaram, sempre quiseram ser mais do que os outros.
Passei a odiar o amor e a culpa é da minha mãe. Tudo começou no dia em que completei dezoito anos, quando percebi que ela tinha um amante. Uma ocasião péssima, bem sei, mas não é como se houvesse um momento ideal para batermos de frente com os erros dos nossos pais.
E se, antes, eu amava o amor, a culpa também era dela! Dela e do mono do meu pai, que me fizeram acreditar que há uma pessoa certa para cada um de nós. «Glorinha, o amor é como uma laranja. O pai é uma metade e a mãe é a outra.» Perdi a conta à quantidade de vezes que repetiram o bordão. Merda para o amor e para a puta da laranja, digo-te já. Realmente deu muito jeito à minha mãe que o amor fosse como uma laranja, para poder partir-se em gomos e andar a distribuir-se por vários homens. Pronto, está bem, talvez não tenham sido vários. Mas foi mais do que um, o suficiente para me fazer ver que essa peta do «juntos para sempre» é como a do Pai Natal, só cai quem é criança ou quem tem atraso. E eu, graças a Deus, considero-me uma adulta funcional.
Nunca mais me vou esquecer do arzinho dela, toda embasbacada, toda babosa, cheia de hormonas adolescentes, efusivas, a olhar para o ecrã como se a sua vida dependesse daquela troca de mensagens apaixonadas. Enquanto isso, eu chegava à maioridade, levava as costas direitas, era finalmente uma mulher, e chocou-me ver a minha mãe tão aluada. Nem pestanejou quando lhe perguntei com quem falava, para estar tão distraída e concentrada ao mesmo tempo. E nem sequer estrebuchou quando, perante o silêncio, não tive outra hipótese senão tirar-lhe o telemóvel das mãos.
Ninguém lhes mandou tirar o amor do peito e andar a exibi-lo ao mundo, mas eles não aguentaram, sempre quiseram ser mais do que os outros. A maior parte dos casais não precisa dessas coisas — namoram, casam, têm filhos e está feito. Mas não, os meus pais abusaram da sorte: dançaram à chuva, no meio da rua; ofereceram galhos de árvores um ao outro porque as flores eram demasiado pequenas para representar o que sentiam; gastaram rios de dinheiro na conta do telefone porque nenhum dos dois queria desligar primeiro. E eu assistia a isso tudo, observava e absorvia, tirava notas para aplicar quando chegasse a minha vez de encontrar a metade da minha laranja.
Amu-te muito, minha prinsesa. Caiu-me o mundo aos pés e ainda hoje não sei se me custou mais descobrir que a minha mãe tinha outro homem, se a postura impávida dela, como se não estivesse a fazer nada de errado. Minto, sei o que me doeu mais: constatar que traía o meu pai com um homem pouco inteligente. Fora de cavalo para burro e não parecia importar-se. Logo ela, que dava importância a tudo.
Mas isso era dantes, na altura em que ela e o meu pai eram um citrino doce e sumarento. Quando se beijavam e se tocavam em público, alheios a quem os mirasse com olhares julgadores. O amor deles era inconveniente, fazia-se notar em todo o lado, principalmente onde não dava jeito. Paravam o carro à porta da escola e não conseguiam esperar que eu chegasse do portão até eles — qualquer tempo morto era tempo de se amarem.
E o que dizer do facto de ela nem se ter dado ao trabalho de inventar uma desculpa? Eu aceitaria qualquer uma, até a mais esfarrapada. Admito, inclusive, que um «isto não é o que parece» teria bastado, tal era a minha urgência em perdoá-la, em manter a imagem que tinha dela e, por consequência, do meu pai. Mas ela arrancou-me o telemóvel da mão e foi buscar um olhar muito antigo — o dos olhos arregalados —, aquele que usava quando eu era miúda para dar a entender, sem ter de falar, que eu estava a fazer algo de errado. Não foi capaz de admitir a culpa, só de a transferir para mim.
«Glorinha, a mãe e o pai nunca se vão separar. Um dia também vais encontrar alguém assim e com quem vais querer ficar a vida toda», sentenciavam, como se a capacidade de amar fosse um gene dominante. E assim foi, de facto, uma sentença para a vida mesmo quando sobrava tudo menos amor. A laranja deles secara e amargara, já não era fruta, já não era sumo. A casca a apodrecer, a ganhar bolor; e eles juntos, apesar disso.
Pronto, portanto como podes ver, a minha resposta é não. Não me parece boa ideia irmos jantar. Espero que compreendas.
teoria do filósofo Zygmunt Bauman
do poema Este inferno de amar, de Almeida Garret