O Verão chegou e com ele a nossa segunda Newsletter Literária. Neste número contamos com textos de quatro autoras, as quais vos farão embarcar em viagens que vão da Madeira, a Inglaterra, do Algarve, ao Marão. Viagens reais e imaginárias, com partidas e regressos, como se impõe, para saborear nestes dias longos.
Obrigada por nos ler e boas férias (se for o caso),
O Clube das Mulheres Escritoras
1816, o ano sem Verão
por Cristina Drios
“Ao longe, sob o céu enlutado, manchas agitavam-se por baixo da água, sombras fugidias que reavivam na sua mente histórias de monstros e criaturas saídas de velhas fábulas.”
Nesse Verão, as águas do Lago Léman estavam ainda mais sombrias do que, no Inverno, as águas do rio Tamisa. Nenhum raio de sol rasgava o céu enegrecido, pesado e soturno. De dia clareava pouco mais do que de madrugada. As sombras tinham-se abatido sobre todo o hemisfério norte e tudo parecia ter sido tomado por uma eterna noite polar. Nevava e a geada queimava as colheitas onde e quando deveria haver sol e calor. Do outro lado do mundo, no ano anterior, o vulcão Tombora acordara do seu sono, expelindo na atmosfera uma quantidade tal de gases, venenosos e negros, que, para meio mundo, matara o Verão de 1816.
Mary, distraída, olhava pela janela e perguntava-se quanto mais tempo iria durar esse Inverno que roubara o Verão. Suspirava e remexia nos papéis pousados na escrivaninha de mogno, de onde, sentada numa cadeira alta de espaldar, avistava grande parte do lago. Com uma chave minúscula destrancou e abriu uma das gavetas da escrivaninha: lá dentro, guardava vários molhos de cartas atados com laços vermelhos. Sorriu. Tinha dezoito anos e todo o tempo do mundo diante de si. Pensou: e se escrevesse uma narrativa epistolar?
Ao longe, sob o céu enlutado, manchas agitavam-se por baixo da água, sombras fugidias que reavivam na sua mente histórias de monstros e criaturas saídas de velhas fábulas. Um corvo crocitou e Mary não soube dizer se o ouvira na sua imaginação ou na margem do lago. A noite e as sombras são, desde que somos crianças, precipícios onde qualquer um pode cair e ser apanhado e devorado pelos seus maiores terrores: com medo do escuro, assim se mantêm os poucos que ficam também, por dentro, para sempre, crianças.
Mary suspirou de novo. O soalho rangeu no corredor e ela estremeceu, malgrado seu. Estava fechada com Lorde Byron e os amigos numa casa de veraneio e ainda só vira Inverno, brumas e negrume. Maldizia um pouco a sua sorte; melhor teria sido, naquelas condições, não sair de Londres.
Os hóspedes haviam chegado há pouco tempo; no entanto, este esticava de um modo agoirento, tornando um segundo numa hora, uma hora num mês, um dia num século. É certo que se divertiam, depois da ceia, lendo uns aos outros antigos contos góticos alemães, encenando-os e discutindo-os. Falavam de fantasmas e almas penadas, em antigas lendas, como as histórias das damas dos lagos ou das damas brancas, donzelas emparedadas vivas cujos espectros voltavam e eram vistos e ouvidos, século após século, a assombrar as torres dos castelos.
Durante o dia, com os hóspedes recolhidos nos seus aposentos, o silêncio tomava conta da casa como um mordomo diligente; ouvir-se-ia um alfinete a cair ou o próprio batimento cardíaco. As madeiras rangiam e uma portada batia aqui e ali enquanto lá fora o vento uivava nas copas das árvores e a chuva tamborilava contra as vidraças. Mary, contudo, tentava afastar a decepção e as ideias nefastas, pensando que, de qualquer modo, o Verão, como qualquer outra estação, era sobretudo um estado de espírito. Na véspera, Lorde Byron, sempre volúvel, já um pouco maçado de tanta leitura, resolvera lançar um repto: agora cada um deles deveria escrever um conto de terror para entreter os amigos.
Mary olhou de novo para as folhas espalhadas sobre a escrivaninha. Ajeitou-as. Pausadamente pegou na pena e molhou-a no tinteiro. Muito devagar, desenhou na sua caligrafia ondulada e elegante as palavras de uma primeira frase:
You will rejoice to hear that no disaster has accompanied the
commencement of an enterprise which you have regarded with such evil
forebodings.
E assim, nos sombrios dias sem Verão do ano de 1816, nascia da pena de Mary Godwin, Shelley de casada, o mais humano de todos os ogres, Frankenstein.
O Meu Verão
por Filipa Fonseca Silva
O meu Verão cheira a loendro e a maresia. Cheira a sardinhas assadas e a Perna de Pau. A farturas e a caracóis cozidos. A estradas de terra batida. Cheira a protector solar.
O meu Verão soa ao canto das cigarras. A erva ressequida a estalar sob os meus passos. A gaivotas e a ondas que rebentam na areia. Soa ao murmúrio de uma ventoinha e a música de festas populares. Soa a crianças a brincarem ao ar livre em pura despreocupação. A andorinhas barulhentas a regressarem aos ninhos antes de anoitecer.
O meu Verão sabe a melancia e a cerejas tão doces que parecem queimar o fundo da garganta. Sabe a pêssegos vermelhos cujo sumo escorre pelas mãos até aos pulsos. Sabe a melão e a figos frescos. A bolas de Berlim com creme e a água do mar. Sabe a beijos quentes e molhados.
O meu Verão desenha-se em tons de turquesa e dourado. Em casas brancas com portas azuis. Em cidades quase desertas. Num pôr-do-sol incandescente, malva e rosa-choque. Numa nuvem de poeira. Numa falésia. No oceano.
O meu Verão é areia quente a queimar a sola dos pés e areia molhada a entranhar-se por entre os dedos. É água fria a arrepiar a barriga antes de um mergulho. É uma toalha endurecida pelo sal. É um banho de mangueira. É a pele quente ao final do dia. É o corpo nu sobre os lençóis.
O meu Verão, cheio de tempo.
E depois deste verão?
por Lídia Praça
“Os meus amores estavam ali, naquele intenso quadro telúrico, onde tu e a praia não cabiam. Porém, secretamente, eu sabia que sem ti os meus amores estariam sempre mutilados.”
Muitas estações chegarão, ainda, depois deste Verão de tempo quente e dias longos, que rima com paixão e coração, e que concorda em pisar o risco e em sair da zona de conforto, rimando ou não.
Segue o teu verão... eram estas as palavras que ecoavam na minha cabeça quando, ao cair da noite, cheguei a casa, determinada a fazer as malas e rumar a sul.
Entrei no quarto a sentir-me quase feliz. Terna é a noite! — exclamei, enquanto recordava o romance de Scott Fitzgerald. Este pensamento chamou-te e eu fechei os olhos à medida que tirava a roupa devagar e a lançava, ao acaso, para o chão. Irrefletidamente, telefonei-te, mas omiti o que queria dizer. Ainda assim, surgiste à minha frente numa imagem forte que me abraçava e envolvia. Terna seria a noite, sim, se estivesses comigo.
Olhei, de novo, a imagem que parecia tão real e, rendida ao que parecia ser, segurei-te a mão e lá seguimos para a Côte d’Azur. O nosso destino era a praia do Dick e nela eu queria viver um fado de prazer entre o sol, o mar, a boa comida e a paixão descomprometida e viciante. Estendida na areia, vi-te aproximar. Debruçaste-te, simplesmente, sobre a minha boca vermelha que se abriu. O teu beijo ávido assolou-me, enquanto, sem pressa, cingíamos a nudez dos nossos corpos. Muito mais tarde, já o frio e a noite nos cercavam, e nós ainda continuávamos abraçados a olhar o mar. Sim, terna fora a noite na Côte d’Azur, mas era tempo de regressar à realidade e, no quarto, em cima da cama, a mala lilás continuava aberta e vazia.
Abri o armário e comecei a eleger cuidadosamente as roupas para a viagem. Sorrindo, imaginei o momento em que virás tu ao meu encontro e, por certo, nesse dia irás encontrar-me numa qualquer montanha do Norte. Nem no campo flores, nem no céu estrelas, me parecem belas como os meus amores, veio-me, traiçoeiramente, à memória, Camões e, com ele, também Trindade Coelho. Os meus amores eram os dele, ocorreu-me e, aproveitando este pensamento, escapei de novo à realidade.
Lá estava eu, a caminhar devagar no sopé da Serra do Marão e a pensar em ti. Aos meus amores juntavas-te agora tu. O sol já descia no horizonte e os raios ofereciam um tom acobreado à terra. Saíra de casa descalça e percorrera a ladeira em direção ao rio. Do meu lado direito, as cerejeiras há muito tinham dado fruto e nos castanheiros do Souto apareciam já os primeiros ouriços verdes. Os meus amores estavam ali, naquele intenso quadro telúrico, onde tu e a praia não cabiam. Porém, secretamente, eu sabia que sem ti os meus amores estariam sempre mutilados. Estava a chegar ao rio quando ouvi o som abafado do motor de um carro. Sentei-me na relva e molhei os pés. A água gelada da mina arrepiou-me. O som estava cada vez mais perto e eu adivinhei que eras tu. Ignoro a natureza dessa intuição; adivinhei, simplesmente. Naquele instante, já o silêncio me envolvera e, sem me voltar, levantei-me para sentir as minhas costas a ajustarem-se ao teu peito largo. Estava descalça num verão incandescente, perfeito e espontâneo como os meus amores.
Depois… depois foi tudo e até foi o pouco que restou quando voltei a escutar o som do motor que se afastava, levando consigo o tempo e o que dele fizemos. Já era noite quando o sonho, por completo, se desvaneceu e eu regressei ao quarto. Na mala, estavam algumas roupas colocadas ao acaso. Cansada deitei-me sobre os lençóis e antes de cair num sono profundo, voltei a escutar, segue o teu verão, e assim fiz.
Cheguei a meio da tarde. Esperavas-me encostado ao carro e partimos logo para o nosso destino. Observava-te, em silêncio, enquanto conduzias através de um elegante bairro de férias, com dezenas de moradias brancas ladeadas por coloridas buganvílias e jacarandás. Tem uns lábios lindos, pensei, e apeteceu-me contar-te um segredo na boca. A Vila, por onde avançávamos agora, parecia ainda mais elegante do que a anterior. Os muros que rodeavam as habitações eram maciços e altos, e nada se alcançava para lá deles. Quando o carro parou já tinha escurecido e a praceta estava deserta. Aproximámo-nos e, a pouco e pouco, começámos a trocar sedentos e demorados segredos. De vez em quando parávamos para simplesmente sorrir. Depois, suavemente, começámos a desprender-nos e a caminhar em direção a casa. Entrámos no quarto pelo terraço. Nos lábios levava ainda um gosto intoxicante que foi crescendo na direta dimensão da entrega. Inebriada, lembro-me de ter pensado que, no sul, também as noites de verão são ternas.
Na manhã seguinte acordámos, perdidos um do outro, numa cama quase do tamanho do quarto. As nossas mãos tocaram-se, trazendo já o desejo na ponta dos dedos. Olhei pela janela e, apesar de estarmos no verão, parecia uma manhã de primavera, com o céu nublado e uma temperatura moderada que contradizia a admirável sensação de pele escaldante e suada que sentia. E, assim, outra vez o desejo se consumou, com um gosto vibrante e intenso a derramar-se sobre nós, ao mesmo tempo que uma submissão emancipada acontecia.
Depois ficámos em silêncio. Pois, mesmo sabendo que muitas estações ainda chegariam após esse verão, queria apenas, naquele momento, sentir a singularidade e a beleza do que vivia, consciente de que cada um é irrepetível e de que não haverá outro tempo igual ao que passa. A meio da manhã levantei-me e fui até ao terraço, sozinha. Olhei para lá da linha do horizonte. O céu estava limpo e o mar azul e calmo. Pensei em Freud e nos descontentamentos da civilização que parecem sempre, milagrosamente, desvanecer-se no verão, porque ternas são as suas noites.
Antes de o verão acabar
por Valentina Silva Ferreira
“Começava a esfriar: na pele e nos contornos do seu desespero. Riscou o poema, empurrou a folha para dentro da carteira e passou os dedos pelo braço da silenciosa artista.”
Saiu de casa respirando o ar embaciado daquela tarde de verão. Pôs os óculos de sol e encaminhou-se pela rua com os olhos pousados nas pedras da calçada. Ao longe, espreitou o relvado. O coração anunciou-se: vê-la era sentir um transbordo de tudo. Quase sorriu. Na verdade, praticamente sorriu, e acelerou os passos em direção ao jardim. O banco encontrava-se iluminado por um largo abraço de sol, uma mancha de exata doçura pigmentada. Ela já ali estava. A perna esquerda sobre a direita; a blusinha fácil e desprendida sobre uns seios demasiado pequenos para necessitarem de soutien; umas calças levemente gastas, porém bonitas. Boho-chique, dissera-lhe um dia, numa conversa sobre estilos. O cabelo entusiasmava-se com a brisa marítima e, de relance, deixava de ser mulher para ser um trigo dourado ao vento. Pusera batom vermelho, coisa rara porque era convicta de que o tempo era demasiado curto para essas factualidades. Cumprimentaram-se ainda ao longe. À medida que se aproximava, sentia os pés afundarem no gazão – metáfora perfeita para a circunstância.
– Soltaste o cabelo – disse-lhe, ao sentar-se. – Fica-te bem.
Não agradeceu. Às vezes, esquecia-se da boa educação, era um tanto despistada e desamparada dessas maneiras agradáveis de ser para os outros. Foi direita à questão.
– Quando vai o Zé?
– Faltam três dias. Já comprou duas malas enormes. Anda a prepará-las aos poucos, nos intervalos dos encontros com os amigos – respondeu, a voz ligeiramente trémula.
– E a namorada? Tem aparecido? – virou a folha do caderno e iniciou um novo desenho.
– Cada vez menos. Duvido que aquela relação se mantenha por muito tempo. Ele tem sonhos demasiado grandes para a falta de ambição dela.
– Ou não fosse teu filho – sorriu sem virar o rosto. O lápis tentava copiar a dobra perfeita de uma asa.
– Não sou tão ambiciosa. Muito menos tão aventureira – murmurou.
– Falta-te é coragem – atreveu-se.
Aceitou a provocação, até porque era verdade. Faltava-lhe, sobretudo, a coragem. Mas o filho tinha-a de sobra e levava essa virtuosa qualidade na bagagem que cuidadosamente preparava.
– Sentirei falta dele – confessou, embora a outra já o soubesse de antemão. Qualquer mãe estranha a falta da cria. – Vejo-o feliz, isso consola-me. Cheio de planos e projetos. Prevejo um futuro imenso – procurou por outro cigarro.
– Também tens planos, não tens? – Dessa vez, olhou-a quase por dentro; quase se abandonou à sua própria lista de tarefas a longo prazo.
Não respondeu. Faltavam três dias e queria fazer perdurar aquela incerteza certa; aquela cobardia do próximo que ainda é longe. Concentrou-se no desenho da artista: a asa começava a ganhar dona – uma gaivota de olho perfurante.
Passaram duas horas em silêncio. Alguns cigarros, uma coroa de sol sobre os cabelos gengibre, as perguntas já respondidas e um desenho praticamente pronto. Pelo meio, a questão que sempre era colocada.
– Queres uma folha?
– Pode ser – esticou a mão, recebendo outro recorte; mais um que seria escondido em casa.
– Já deves ter quantas centenas de poemas?
– Perdi-lhe a conta, sabes… Não vale a pena.
– Vale sempre a pena. Nem que seja pela certeza persuadida de que não vale a pena e, mesmo assim, continuas.
– Tens razão – pôde sorrir. – Tens sempre razão.
Começou a escrever. Mas, antes, deitou as pestanas sobre a vista que se desenrolava. Era o bocado de terra-ilhéu mais inspirador. Especialmente daquele banco e especialmente por ser verão.
– Dói tanto assim? – sabia que não devia demandar sobre os rascunhos de uma poetisa, mas aquela pergunta era abrangente.
– Dói mais – riscou o poema.
– E dói menos sabendo as consequências dessa partida?
– Dói igual. As dores não diminuem apenas por crescer uma felicidade ao lado. Aqui dentro… – bateu no peito. – Aqui dentro está tudo dividido. Uma parte para as dores, outra para as felicidades. Podem estar ambas cheias, ao mesmo tempo. Não deixo de sofrer por estar feliz.
– É o teu filho – compreendeu. – Está de volta pelo Natal – tentou amenizar.
– Que regresse quando quiser. Estarei sempre à espera.
Precisava de ir. Começava a esfriar: na pele e nos contornos do seu desespero. Riscou o poema, empurrou a folha para dentro da carteira e passou os dedos pelo braço da silenciosa artista.
– Já vais – disse, sem perguntar. – Já é um pouco tarde, tens o jantar para fazer ao teu filho. Depois ele vai e cozinhas para quem? – abriu muito os olhos à espera da resposta. Daquela resposta.
– Deixo de cozinhar – enterneceu-se pela expressão de réplica. – Cozinho para ti – cedeu. – Mas só de vez em quando – virou-se e inspirou o vento feito de flores de jacarandá. – Até amanhã.
Saiu de casa. Vinha de banho tomado e aproveitou essa envolvência de cheiros frescos para passar diante do talho, de cabeça erguida, sem olhar para dentro. A vida que passava diante da morte, assim o queria traduzir. Escolhera um fato de treino simples porque as despedidas traziam essa ausência de paciência, como se tudo o que se espaçasse da partida fosse insignificante. Fez a Rua de Santa Maria atenta a todos os menus. Precisava de se decidir[6] sobre um sítio onde ir com o Zé, naquela noite. Era a última.
– Espetada, atum à vilhão, filete de espada com banana frita… – ouvia, a rodos. – Temos milho cozido hoje.
Foi acenando, em sinal de agradecimento, mas sentia-se estonteada, tal era a incapacidade de lidar com aquela lista infindável de certezas de que o filho ia mesmo embora no dia seguinte. Desapareceu na esquina e procurou-a, qual atalho esotérico. No banco, desmaiava uma luz clarinha, que praticamente não aquecia. Trazia um casaco leve, naquele dia, e o cabelo vinha preso, como se o trigo tivesse sido colhido e amarrado numa saca de serapilheira. Não tinha batom e estava descalça. Preferia-a assim: uma artista em toda a sua liberdade complexa e mártir de ser quem era. Aproximou-se sem fazer barulho. Ela desenhava e não queria interromper os fluxos criativos que por ali se embrulhavam. Conheciam-se pelos cheiros; ela percebeu a chegada. Sentou-se.
– Como te sentes? – perguntou sem desviar os olhos do Forte de São Tiago, que retratava perfeitamente no caderno.
– Miserável.
– Eu estou feliz. Desculpa – suspirou.
– Tudo bem. Não tens de reprimir o que sentes por minha causa.
– Espero que fiques feliz depois.
– Feliz não direi.
– Entendo.
Calaram-se. Uma passou meia folha à outra, sem levantar os olhos. Olhavam-se tão pouco que talvez não se reconhecem fora daquele halo.
– Não sei se me sinto inspirada para palavrear – gracejou.
– Parece-me que estás plenamente inspirada – sorriu. E olharam-se. – Escreves tanto para esta cidade. Alguma razão para isso?
– Foi onde nasci. Foi onde me conheci. Onde tive o meu Zé.
– Onde nos conhecemos.
Ignorou.
– Foi onde tudo aconteceu. Onde me aconteci; onde me acontecerei. Sou um bocado de mulher, num bocado de terra. Agora vai o Zé embora, levando com ele metade do bocado que já sou e metade do bocado desta terra.
– Vai fazer falta por cá – disse, sinceramente.
– Achas? – Mostrou os dentes pouco cuidados num grande sorriso.
– É um miúdo porreiro. Esteve aqui comigo, ontem.
– Ontem?! – Estranhou. – O que te disse?
– Que quer que sejas feliz.
– O que lhe disseste? – a expressão seria cómica se não fosse trágica.
– Descansa. Não lhe disse nada. Conversámos sobre tudo menos sobre ti. De ti, disse apenas isso: que quer que sejas feliz.
– É um bom miúdo – serenou. – Achaste-o satisfeito?
– Satisfeito como um pássaro em liberdade – sentenciou.
– Também acho. É o que me consola.
– Não te consoles só com isso. Tens tanto mais.
– Falta um dia – cortou. – Quero aproveitar – estendeu a folha rasurada. – Fica para ti. Acho que está na hora de deixar de esconder o que escrevo.
– Vais cozinhar para o Zé?
– Não, hoje jantamos fora. Ele merece.
– Claro, é o teu filho e falta apenas um dia. Vens amanhã? – Os olhos transmutavam-se aos poucos, como se fossem dois berlindes inquietos.
– Não me perguntes o que já sabes. Amanhã dedico-me apenas ao meu sofrimento.
– Compreendo. É o teu filho. Vens depois?
– Venho ainda antes de o verão acabar.
– Assim fazes com que tenha contado mal a decrescência – gemeu e baixou a cabeça.
– Começas de novo – dedilhou o braço da artista e afastou-se.
– Até breve.
Nem foi a casa. Praticamente correu do local de trabalho em direção ao jardim. Trazia a farda branca, suja, e o cabelo oleoso preso num carrapito. No banco, por baixo das caixas voadoras, a artista encontrava-se de olhos fechados, com o rosto apontado ao sol. Já não era trigo, nem cereal preso à saca: era um inexplicável íman dourado, silencioso, dominante, era o retrato perfeito de um dia de verão. Tinha batom e, ainda, um colar de pedras coloridas. As pernas desapareciam na saia larga e os braços ossudos saltavam do estranho colete. Correu, tinha de correr.
– Como estás? – Dessa vez olhou-a.
– Melhor – sorriu.
– Chegou bem, o Zé?
– Está impecável. Farta-se de mandar fotografias lá da Califórnia.
– Demoraste menos. Só contei dois dias.
– Percebi que as dores também se dominam com felicidades e que o verão é a altura perfeita para ser feliz.
– Quem te disse?
– A poesia que escrevo.
– Podemos começar, então?
A travessia por aquele rosto quase a fez gritar de exatidão amorosa. Conhecia-a tão bem, desconhecendo ao mesmo tempo. As olheiras cravadas na pele, um olho mais escuro do que o outro, o cabelo revolto sobre a testa.
– Sim – respondeu, devagar. – Com calma. Sou um bocado tímida – acrescentou, sem saber por que o dizia.
– Somos todas um pouco, não é verdade? – riu-se durante muito tempo, fazendo-a desesperar por silêncio só para a poder contemplar cruamente, sem trejeitos.
– Queres ir para outro sítio? – Perguntou, tamborilando-lhe as mãos com leveza.
– Vamos – a voz saiu-lhe diferente. Como se não lhe pertencesse.
Deitou-a na cama. Na urgência do conhecimento haviam-se despido em pé, na entrada, tropeçando nas roupas que iam caindo. Agora, Sandra encontrava-se por baixo, ébria por aquela tempestade carnal que a dominava. Pestanejou, tentando libertar-se do enevoamento que a desvairava. Concentrou-se no que via, tão perto: os lábios entreabertos, gordos e molhados, o suor pontilhado no buço, as maçãs do rosto beijadas pelo sol, as pálpebras embriagadas pelo apetite. Mara sorria ao mesmo tempo que se movimentava às ondas, colocando uma mão sobre a boca de Sandra.
– Amo-te desde a primeira vez – ciciou.
Sem replicar, tombou o pescoço para o lado esquerdo, revolvendo-se na mão de Mara que descia sem fôlego. Apetecia-lhe chorar, com a candura de Mara dentro do coração, enovelando-a, curvando-a numa roda de amor.
– E eu a ti – respondeu, finalmente, avançando com a boca pelos ombros como se lhe tomasse a temperatura da pele.
A outra vistoriou Sandra com o olhar, tentando compreender o significado daquela frase tão importante. Tomou-lhe o calor do corpo com a respiração. Ainda era verão! Sandra sentiu o tempo parar. O ar assemelhava-se a uma aragem desértica carregada de areia. Beijaram-se. Primeiro leve, breve. Depois rápido e húmido, com gemidos na garganta e açoites no coração. Sandra beijava com desespero, numa espécie de loucura feminina, como se soubesse que estava presa num perigoso ardil. Quanto mais provava, mais presa ficava à certeza de que não conseguiria viver mais na mentira. Mara resfolegava-se na cama, felina, cheiro a canela e mostarda, arfando com os dedos enrolados nos lençóis e a língua caída para o lado, à espera do resvalo de Sandra.
– Agora… podemos… – a respiração morria nos beijos. – … ficar… juntas…
Sandra sentiu o desequilíbrio, a perda, a queda. Já não havia como voltar atrás. Mara tornava a sua alma sonolenta e feliz. O corpo escaldava: os pulsos febris, a maciez da pele na carne, o arrepio nas pernas.
– Antes de o verão acabar e todos os verões da nossa vida…