ORGANIZAÇÃO: VALENTINA SILVA FERREIRA | REVISÃO: JOANA KABUKI | TEXTOS: ELISABETE MARTINS DE OLIVEIRA, RITA CRUZ E RITA DA NOVA.
Revolução, revolução.
Cinquenta anos de revolução. De uma lufada de ar que nos encheu o peito. De um olhar que se encheu de esperanças, de garantias, de certezas. A não ser que…
As revoluções são todas inacabadas.
Cinquenta anos de revolução. De uma implacável ameaça de que nada é garantido. De um incómodo que cresce, devagarinho.
Nesta Newsletter de abril - Abril com maiúscula porque a Revolução deveria ser nome próprio - Elisabete Martins de Oliveira, Rita Cruz e Rita da Nova escrevem sobre o fascínio e a consolidação da liberdade, mas, também, a iminência da sua ausência.
Cinquenta anos de revolução e a certeza de que, todos os dias, ao espelho, perante os outros, diante das atrocidades e dos retrocessos, das lacunas e dos silêncios, digamos:
Vamos fazer a revolução, camarada?
Boa leitura,
Clube das Mulheres Escritoras
Do silêncio, a revolução
Por Elisabete Martins de Oliveira
No alvor ténue, correm ainda as últimas horas da madrugada de um céu frio e nublado, vês nos seus olhos o cintilar do medo, mas de um desejo profundo de liberdade.
Revolução, revolução, murmuras, enquanto escutas as súplicas lá fora, silenciosas, mas gritantes.
É um pulsar constante: como se o chão estremecesse sob os teus pés, antecipando a ferocidade da revolta contida. Conformada até rebentar as cordas que sufocam as gargantas.
Revolução, revolução.
Mas os cânticos silenciosos, impregnados de raiva, não se escutam apenas lá fora, onde as corujas procuram entoá-los, numa língua animal disfarçada.
Eles rebentam também de ti.
Em surdina, num sussurro, por vezes num murmúrio ou em voz muda, entoas: Revolução, revolução. Porque as faces te ardem. E ele nem se digna a escondê-lo — mostra-o para que toda a gente veja. Passeias-te com as marcas de uma raiva que ele apenas exterioriza em ti. Da que se silencia, como todas as atrocidades que as pessoas engolem. E ele sorri. É um sorriso de vitória, talvez um meio sorriso, não consegues interpretar. Os teus olhos não veem, inchados daquele soco que voou até ti sem que conseguisses reagir.
Revolução, revolução.
Começa baixinho, lá fora, as pessoas que temem em soltar as feras do conformismo, mas que anseiam a liberdade. Escuta-las através da parede da sala, enquanto o teu bebé dorme no sofá, alheado daquela que se pode tornar na maior rebelião contra o regime de sempre. Sente-lo nas mãos, a força de quem se recusa a aguentar mais liberdades reprimidas, mais silêncios forçados, mais obediência cega.
E ele ressona no quarto, tranquilo, depois de descarregar em ti a preocupação com o dinheiro que vocês não têm e com o qual não alimentam o filho, a raiva perante os outros homens no bar, que lhe terão chamado coisas que te recusas imaginar. Só o sentiste na força com que cada murro te atingia. Doía. Doía tanto.
Revolução, revolução.
Ao escutares as pessoas saírem à rua, preparando-se para marcharem pela liberdade, tomas uma decisão. Ela pesa-te no peito — sabes que podes sofrer por isto, que ele pode perseguir-te e partir-te cada osso sob a pele —, mas é a decisão certa.
O momento certo.
Seguras no bebé, naquele ser que te mostrou o que o amor significa, e encosta-lo a ti. Fá-lo por ti, mas por ele também. Para que ele não tenha de crescer com a mesma violência que te marca o corpo.
Ao saíres à rua, cruzas o olhar com as outras pessoas. São famílias inteiras, as crianças pelas mãos dos pais. Olhas as mulheres nos olhos, vizinhas que tão bem conheces, também elas com o fervor dos maridos gravados na pele. Na memória, para sempre. No alvor ténue, correm ainda as últimas horas da madrugada de um céu frio e nublado, vês nos seus olhos o cintilar do medo, mas de um desejo profundo de liberdade.
Revolução, revolução, cantam baixinho. A elas, juntam-se outras pessoas, primeiro dezenas, depois centenas. Não são apenas as pessoas que suplicam pela liberdade. Tu também suplicas por ela. Por uma vida diferente.
No colo, o bebé desperta, curioso. E quando ele te toca com a mãozinha no rosto, sentes os nós na garganta. Inspiras fundo e fá-los desaparecer. Marchas com os que não se conformam. Com os que, como tu, exigem desprender-se das amarras da repressão política e pessoal.
Revolução, revolução!, gritas.
As revoluções são todas inacabadas
Por Rita Cruz
(…) vou-me baixar, vou-me ajoelhar para ficar da tua altura, e vou-te dizer, no meio da multidão, que nunca te esqueças que as revoluções não são um dia, uma tarde ou uma manhã.
Lembro-me de mim ao ver-te no retrovisor, olhar perdido na paisagem que corre do outro lado da janela. O tempo passou na pele, que é a carcaça do que sou, deixou-a caída e manchada, firmemente vincada. Mas no interior, dentro da cabeça com que me sinto, o tempo não roubou uma coisa para deixar outra. Sou várias camadas, que se mantêm intactas, de todas as idades que fui. Agora, por exemplo, que te vejo e me lembro, fecho os olhos, embalado na velocidade do carro que a Gabriela conduz, e tenho um corpo pequeno, uma pele macia, e a despreocupação que uma criança de sete anos deve ter. Que eu tive. E que tu tens.
Há cinco décadas, quando tinha a tua idade, também me levaram de carro para uma manifestação. Também olhei assim, para o outro lado da janela, sem poder perceber a importância do dia. Senti-lhe a alegria, contudo, e talvez o peso, porque o guardei para todo o meu sempre. Por isso esta nostalgia, creio, este meu súbito rever-me ao ver-te, abstraído na paisagem de uma janela, numa cópia tão exacta do sentir, mas num tempo tão diferente. Nos acontecimentos da História, na paisagem que observas, na música que nos acompanha, o tempo passou como na pele, e também roubou uma coisa para deixar outra.
Parece-me hoje que o que roubou, foi a ilusão de uma vitória.
Outro dia, ocorreu-me uma frase, que desde então se meteu num recanto teimoso da minha memória. Soou-me a verdade incómoda, e por isso ali ficou, a saltar para dentro de todos os pensamentos, tão persistente como um pedaço de comida entalado nos dentes onde a língua insiste em roçar.
As revoluções são todas inacabadas. Talvez a tivesse ouvido dizer aos meus pais, sem nunca a escutar. Eles provavelmente sabiam-no. Tinham sido muitos anos de repressão e obediência, para que se pudesse dizer com certeza Acabou! e Nunca Mais! Dizia-se, claro. Mas era um dizer que era um pedido, quando muito um grito de exigência, mas nunca uma certeza. A liberdade era demasiado preciosa, a verdade manipulável, o ser humano frágil.
Talvez a tivesse ouvido sem escutar, porque para mim, filho desses pais, herdeiro da liberdade, para mim a revolução estava feita. E para os meus filhos, mais ainda do que feita, a revolução começou a ser coisa de passado. Fora os cravos vermelhos e vivos, o resto eram imagens a preto e branco, pálidas de realidade, com gente a dizer pás! obtusos e a decorar o rosto com barbas e estranhas patilhas. Um passado enterrado e sem retorno, perante o vigor cromático da modernidade.
Mea culpa.
Quis achar que a Revolução tinha acabado no Largo do Carmo, naquele dia de Abril. Com aquela multidão a preto e branco, encavalitada nas árvores, com calças à boca de sino a caírem dos ramos como folhas e flores. Tanta gente a sair de casa, quando a ordem era ficar dentro dela. Homens, muitos homens. Poucas mulheres, que a praça pública ainda não era para elas.
Quis achar, apesar de em pouco tempo perceber que aquela Revolução começava com uma mentira. Aqueles homens de punho levantado e vozes bravas, agarrados aos troncos das árvores, a gritarem vitória, o peito inchado de coragem e certezas… onde estavam no dia 24 de Abril? Aquela explosão de coragem que se vê nas imagens captadas por câmaras incipientes e jornalistas pouco habituados à espontaneidade, onde estava, naquela mesma exacta hora do dia anterior? Sim, porque aqueles que se encavalitam das árvores e erguiam punhos não podiam ser os que estavam dentro das prisões, nem os que estavam no exílio, nem os que estavam na clandestinidade. O mais provável era no dia anterior estarem descansados no sofá, a ver a bola. Apoderaram-se da Revolução, na euforia, fizeram-na nossa, mas a verdade é que não o tinha sido.
Quis continuar a achar que estava acabada, mesmo quando, em algum momento, percebi como um país profundamente hierárquico só temporariamente fingia deixar de o ser, e como não eram de louça, mas de plástico descartável, as apostas na educação, na saúde, na habitação. Vi, apesar das palas nos olhos que ajustei com rigor, como na periferia do discurso político havia uns poucos bolsos a encher e muitos a esvaziar. Como proliferava a falta de ética e dignidade, honestidade e humanidade. Ouvi, como as nossas elites aprenderam a falar a linguagem da Revolução, enquanto continuaram a fazer o que sempre fizeram. Ano após ano, de cravo vermelho ao peito, o país cada vez mais pobre e endividado, mais perdido e manipulado, menos humano, e as nossas elites sempre mais gordas e refasteladas, cada crise, um banquete. Em silêncio, observei como deixámos de conhecer os factos e estas verdades, não por recurso à censura de um lápis azul, uma trabalheira afinal desnecessária, mas a uma muito mais sábia manipulação económica do jornalismo. A luz ficou a incidir no que elas quiseram e querem mostrar, os ângulos escolhidos com cuidado. À sombra, o que interessa esconder, de súbito tão complexo e difícil, os contornos só perceptíveis com muito esforço da pupila, e tão aborrecidamente monocromáticos.
Em pouco tempo, a multidão do Largo do Carmo sentou-se a ver televisão, pacata e obediente, e decidiu que a revolução estava feita, tão feita, que até já nem era necessário ir votar. Tão feita, que em algum momento se tornou moda dizer eu não gosto de política.
Mea Culpa.
A tua mãe di-lo, e não está contente que venhas connosco hoje. Diz que és muito novo para essas coisas. Mas é precisamente por isso que te trago. Tens a mesma idade que eu tinha quando, encavalitado nos ombros do meu pai, desfilei no primeiro de Maio de 74. Ficou em mim a semente que não deixei à minha filha, e me arrependo. Hoje, vens desfilar comigo, e vou plantar um dia na tua memória.
No banco de trás, vejo-te atento à paisagem. Não ouves o que penso, vais absorto no teu mundo. Ao teu lado, cravos vermelhos e a bandeira de um povo oprimido que as elites mundiais deixam morrer, como no passado deixaram outros. Elas, e os seus ismos, nunca rimaram com humanidade. Quero que o saibas e te habitues a dizer não! desde novo, desde sempre, e não apenas quando são os teus direitos, a tua vida, a tua liberdade que vêem limitar. Aí, pode já ser tarde demais. Por isso, hoje, quando achar que é o momento certo, quando estiveres no seio da euforia, encavalitado aos meus ombros, que eu bem me lembro de como me senti, nestas camadas de mim que mantenho intactas por debaixo da pele descaída e manchada, vou-me baixar, vou-me ajoelhar para ficar da tua altura, e vou-te dizer, no meio da multidão, que nunca te esqueças que as revoluções não são um dia, uma tarde ou uma manhã. Se forem só isso e depois virarmos as costas, fecharmos os olhos, cruzarmos os braços, como eu fiz, todas elas ficam inacabadas. És jovem ainda, mas é importante que o ouças. Porque eu só agora o percebi, e talvez tivesse sido diferente, se o tivesse entendido antes.
Vamos fazer a revolução, camarada?
Por Rita da Nova
(…) embora soubesse que uma flor colhida é uma flor morta, gostava de acreditar que morrer pela revolução seria viver para sempre.
Vamos fazer a revolução, camarada?
Isabel olha-se ao espelho sujo do elevador, e nos seus olhos vê os dela. A doçura do mel e a solidez da terra, num tom de castanho que a genética nunca mais conseguiu replicar.
Há pessoas que têm um jeito próprio de tocar à campainha e a avó era uma delas. Trri, trri, trri, três sinais sonoros curtos e apressados davam a indicação de que estava prestes a começar o dia mais feliz do ano. Como se ela precisasse de ser avisada. Dormir de 24 para 25 era quase impossível: a excitação tomava conta do seu corpo de criança, a mente incapaz de se descolar da manhã seguinte, as horas passadas naquele limbo provocavam-lhe uma dor no peito, ali mesmo ao lado do coração. Aos outros miúdos acontecia-lhes o mesmo em dezembro, mas para Isabel o Natal celebrava-se em abril.
Quando a avó acabava de subir a escada, ela já se tinha calçado, como que para dar a entender que estava pronta para avançar. Mas o dia não começava enquanto a tal pergunta não fosse proferida, alto e bom som, com a avó ainda do lado de fora da porta:
— Vamos fazer a revolução, camarada Isabel?
— Vamos, av… vamos, camarada Alcina!
Nos primeiros anos, o lapso era mais comum. Afinal, passava o ano todo a chamar-lhe avó e naquele dia tinha de lhe chamar «camarada», era normal que se baralhasse. Às vezes também chamava «mãe» à professora, não fazia por mal, simplesmente acontecia porque a cabeça dela funcionava a uma velocidade superior ao resto do corpo.
Embora Isabel quisesse sair logo, de mãos dadas com a camarada Alcina, sabia que ainda tinham de esperar pelo avô — camarada Tomás, mal passasse a porta — porque era ele quem trazia as armas, e sem armas não se podia fazer a revolução. Nunca percebeu muito bem como é que o avô conseguia que Lídia, a florista do bairro, lhe vendesse as flores com a loja fechada durante o feriado, mas a camarada Alcina já lhe tinha explicado que conhecer as pessoas certas era uma das coisas mais importantes numa revolução, talvez fosse isso. Isabel adorava aquelas flores, que eram como rosas sem espinhos feitas de aparas de lápis de cor vermelha. Mesmo depois do dia da revolução, tentava conservá-las ao máximo — embora soubesse que uma flor colhida é uma flor morta, gostava de acreditar que morrer pela revolução seria viver para sempre.
Fazer a revolução incluía esta preparação toda, mas era relativamente simples: Isabel, só tinha de caminhar pelas ruas de Lisboa sem perder os camaradas de vista, gritar bem alto que a dentadura nunca mais, e comer uma bifana cheia de mostarda no final.
Gostava muito de fazer a revolução. Até ao dia em que aprendeu sobre o 25 de Abril de 74 na escola, e percebeu que, afinal, a revolução já havia sido feita há muitos anos. Sentiu-se traída pela avó, que tratava a revolução como uma brincadeira de faz-de-conta: agora eu sou o médico e tu és a doente; agora eu sou a professora e tu és a aluna; agora vamos fingir que a revolução se repete todos os anos.
Seria possível que a avó orquestrasse aquilo tudo só para a enganar? As centenas de pessoas nas ruas, os cânticos, os cravos a voar, os cartazes coloridos cheios de mensagens de esperança.
Nesse ano, Isabel não queria ser camarada. Não assomou à porta, manteve-se de pijama e descalça. Alcina foi ter com ela à cama ainda vestida de avó, a máscara de camarada tinha ficado lá fora.
— Enganaste-me, cam… avó.
— Eu nunca te enganaria, filha. O que se passa?
— A professora contou do 25 de abril, mostrou no livro de História que a revolução já foi feita há muitos anos… diz que o que nós fazemos é só uma manifestação.
— Ah, camarada Isabel, então é isso. Chega-te cá — disse, puxando-a para si antes de continuar. — A revolução fez-se pela primeira vez em 74, sim, mas essa foi só a primeira de muitas. São assim as grandes responsabilidades, minha querida. Não têm tanto que ver com o facto de serem fáceis ou difíceis, mas com termos de as cumprir todos os anos. O mal tem a voz muito alta e ocupa muito espaço, mas só se deixarmos. Fazer a revolução é não deixar que o mal viva, é fazer a liberdade respirar. E eu gosto de pensar num mundo em que tu podes ser livre, mesmo quando a avó já não estiver cá para fazer a revolução contigo.
Isabel sai do elevador o mais depressa que pode, odeia aquelas cápsulas do terror — tem até a certeza de que será uma questão de tempo até ficar presa e ninguém a conseguir socorrer. Seca os olhos antes que Alice lhe abra a porta: não quer que a neta pense que a revolução é uma coisa triste.