ORGANIZAÇÃO DA NEWSLETTER: VALENTINA SILVA FERREIRA | REVISÃO: CATARINA COSTA | TEXTOS: CATARINA COSTA, GABRIELA RELVAS, JOANA KABUKI E LÍDIA PRAÇA.
Há regressos e regressos.
Aqueles que ansiamos e os que adiamos. Os que sussurram poesia e os que cospem a verdade. Os que pagamos para acontecer. Os que são abismos.
Há regressos e regressos.
Em comum, a certeza de que nenhum regresso é, efetivamente, um regresso: voltamos, mas não voltamos. Onde ficamos?
É setembro, mês de regressar. Ao quê? Descubram nesta Newsletter.
Boa leitura e… bom regresso,
Clube das Mulheres Escritoras.
Quando o regresso é um resgate
por Lídia Praça
“Todo o regresso é um misto de progresso e retrocesso. Todo o regresso é uma síntese da vida que vai e que volta, mas que nunca volta igual, ao lugar de onde partiu.”
Há muitos anos conheci uma mulher que, em pouco tempo, se tornou quase uma extensão de mim. Forte e vulnerável. Determinada e hesitante. Real e idealizada. Já não a vejo há uma década. Não sei se existe e é imortal ou se pertence a uma eternidade desconhecida e ficcionada.
Chamava-se Madalena. Maria Madalena. Conheci-a numa viagem. Daquelas viagens que convidam a “ir”, a avançar, a explorar, a tatear, a sentir, a saborear de olhos fechados. Inspirava-me na confundibilidade da individualidade de cada uma. Igualadas ao ponto de sentir, muitas vezes, que nos acrescentávamos, e diferenciadas o suficiente para me permitir eliminá-la, sem criar um sentimento de falta, de incompletude ou de vazio.
Percorremos um curto percurso de vida, que visto de fora parecera intenso e forte. Inabalável. Como se a vida tivesse alguma coisa de inabalável!... Não tem! Desaba a todo o momento e algumas vezes temos sorte e sobrevivemos e outras vezes ficamos soterradas nos escombros, mas acreditando sempre que a verdadeira vida está no que se reergue a partir da desordem.
Nessa curta viagem fomos observando o que havia para admirar e fazendo morada onde havia vida. Viajávamos numa oportunidade de conforto, segurança e muito entusiasmo, pelas coisas novas e, também, pelas coisas conhecidas, mas encaradas de outra perspectiva. À nossa frente a descoberta. Pelos nossos olhos as imagens de um filme que se realizava para nós e por nós. Nesse tempo sentia-me soberana e acariciava o poder que fervilhava em meu redor. Nada é mais inebriante do que o sentimento de dominação e posse. A história é feita destes dois ingredientes e só deles. A par do poder, só o incompreensível fascínio de desafiar o abismo. O terror e o assombro de atingir o Érebo e não cair.
A Maria Madalena era assim, feita dessa seiva, que nutre em igual porção os heróis e os mártires e também as testemunhas que morrem pelos seus depoimentos.
Um dia avistámos um trilho do lado direito da estrada. Estreito e sinuoso. Ocultado pela vegetação densa que o tornava sombrio e sobre o qual pairava uma espessa e estranha neblina. Desconfiei que lá mais para a frente terminaria num escarpado a afundar-se no mar. Nesse instante senti a pressão do olhar da Madalena em mim e imediatamente lhe descobri um brilho singular e enigmático. Os seus olhos negros tinham-se tornado dois carvões incandescentes.
— Vamos?
— Estás a brincar? — Respondi, com outra pergunta.
— Não! Eu vou!
Naquele momento percebi que nada a faria desistir. Olhei de novo para o lugar que a hipnotizava. Desconhecido, oculto e sombrio. Não parecia real, mas, estranhamente, chamava por nós. Quem teria coragem de seguir sozinho por aquele trilho de agonia que, simultaneamente, desafiava e horrorizava? De repente, o trilho movera-se e, no instante em que pareceu que ia engolir-nos, eu recuei e a Madalena desapareceu. Não se despediu. Simplesmente foi. Fiquei muitas horas… talvez dias à espera de a ver regressar. De a ver cruzar o mesmo portal que a consumira, mas nada. Ela não voltara.
***
Um dia, levantei-me para seguir viagem, pois tudo indicava que a jornada da Maria Madalena acabara ali. O que teria descoberto? O que a levara a não voltar? Soçobravam as respostas e a convicção de que nem a curiosidade me levaria a esse trilho para as descobrir. Ainda assim, arqueei-me ao peso de não ter evitado, ou tentado pelo menos, que ela se abandonasse ao arrojo e à intrepidez semiconsciente do fascínio pelo abismo, e sobretudo, do clarão da faísca e do perigo.
Recomecei a caminhar. Ela não regressara da estranha vereda onde se emboscou e, por certo, não regressaria jamais.
Assaltou-me, nesse instante, uma tristeza pesada. Muito pesada. Como seria continuar sem a Maria Madalena? A mulher que todas nós guardamos como uma relíquia, mas que desejamos sempre pensar que é outra pessoa, mesmo quando a vemos no espelho para onde olhamos. É certo que a vida sem a companhia das nossas Madalenas é um céu de tranquilidade e paz, é um espaço de tudo, sem sobressaltos e faltas. Mas, nunca deixará de ser apenas uma meia-verdade, mesmo que pareça uma verdade inteira e completa, porque a outra metade da verdade pode bem ser a nossa verdadeira essência.
Andei assim muito tempo. Sem a inquietação da Madalena, e ignorando o que lhe tinha acontecido, voltei a ser simplesmente eu. A parte de mim, que não sentia a sua falta e que secretamente desejava que ela não regressasse, porque o seu regresso seria porventura o meu resgate. O resgate que, no conforto da minha área, eu não desejava. A Maria Madalena assustava-me, talvez porque me despertasse.
Quando disse que esperei por ela, que esperei que regressasse, menti. Não esperei e mal a vi desaparecer também eu desapareci daquele local. Fugi e jamais desejei que ela me alcançasse. Na verdade, nenhuma de nós prometeu nada à outra. Eu não prometi que a esperaria e ela não prometeu regressar.
***
Uma tarde sentei-me, cansada, numa esquina da vida. Senti um vazio desocupado. Senti a falta dela. Sem saber se olhava uma quimera ou se me olhava no espelho, avistei-a do outro lado da rua, que bem podia ser, simplesmente, o outro lado de mim. Era a Madalena, sem dúvida, e tinha emagrecido e empalidecido, tal como eu. A outra metade da minha verdade, ou porventura a minha ficção, regressava, proporcionalmente ajustada ao tempo que passara por mim, e as duas metades tendiam agora para a harmonia do inseparável.
— Onde estiveste, Madalena? Por onde andaste?
— A pecar — respondeu, com um sorriso atravessado.
— Madalena, a pecadora! – Exclamei, sem convicção. — Madalena, a pecadora, que não ofendia, que não desrespeitava, que não errava, que não falhava, que não faltava. Que pecados terá cometido quando se desviara? Como se dissesse vou ali e já volto, ou não…
A Madalena deixava-se atrair pelo abismo, muitas vezes. Queria conhecê-lo, descobrir como era e onde terminava, mas encontrava sempre a certeza de que o abismo é o outro lado do arco-celeste. Inatingível e inultrapassável. Tão somente uma ilusão!
Maria Madalena, a pecadora. Maria Madalena, que também foi santa. Dual, como tudo na vida.
— Porque voltaste?
— Porque o abismo me foge sempre.
Franzi a testa e ela continuou:
— O abismo chama-me e aproxima-se, mas, quando ficamos muito perto, quando sinto que lhe vou cair nos braços, ele distancia-se. E, depois, volta a parar e a permitir que me aproxime e eu corro para ele, mas quanto mais corro mais ele se afasta. De repente paramos os dois e recomeçamos de seguida. Tanto me chama como me rejeita. Há momentos em que fico cansada e desisto e, então, regresso calmamente, como se esse regresso fosse um resgate. Um resgate e não um recomeço. Porque nunca se regressa para recomeçar, mesmo que se deseje, percebes? Todo o regresso é um misto de progresso e retrocesso. Todo o regresso é uma síntese da vida que vai e que volta, mas que nunca volta igual ao lugar de onde partiu.
@lidiapraca
Regressos
por Catarina Costa
“Às vezes, pelo contrário,
ao regressarmos ao lugar onde fomos felizes
reconhecemos o seu esplendor antigo”

Regressamos ao lugar onde fomos felizes mas esse lugar, separado já do tempo em que o habitámos, é agora apenas um espaço inculto, liminal, um pobre terréu sobre o qual nada projectamos para lá de recordações de soslaio as ervas daninhas tomaram conta dele, um colchão desconfortável onde nos deitamos e tentamos dormir de novo quando por fim adormecemos não atravessamos a sonhar o umbral para o passado, estamos presos no presente e na arbitrariedade pura, sem mediação, dos sonhos baldios *** Às vezes, pelo contrário, ao regressarmos ao lugar onde fomos felizes reconhecemos o seu esplendor antigo enlaça-nos, porém, um fio de tristeza que não cortamos, não queremos sequer cortar – experimentarmos de novo a antiga felicidade seria maldição, um retrocesso das dores do crescimento, forçar na carne do presente o fantasma agridoce de infâncias ultrapassadas aceitamos pois a tristeza onde antes esteve a alegria e chamamo-la, em linguagem serena, de nostalgia *** Sabemos desde o início que não regressaremos a certos lugares por isso quando os cruzamos cartografamos todas as suas encruzilhadas, redobramos a nossa presença em cada esquina como se nos esculpíssemos em estátuas de olhar fixo para o espaço a que se ligam pela matéria dura sabendo impossível o retorno tentamos abarcar tudo antes de irmos embora com a nossa visão de mármore, ou de pássaro – não deixamos para trás nenhum relance
catarinacosta3@gmail.com
Vinte e cinco euros por um regresso
por Gabriela Relvas
“E, de repente, ali estava eu, numa máquina do tempo, num regresso ao passado sem nunca ter almejado ir mexer nele.”
Deviam ser 23h00 quando a noite ia bem regada naquela festa popular que encerrava o período da praia, e nenhum de nós adivinhava que íamos largar os copos como objetivo único de vida por causa de uma fila para uma vidente. A Marília.
Foi o Veiga que falou dela. Já era hábito ir lá todos os anos, à tendinha junto ao lago, atrás das barracas de bugigangas que subiam até à igreja: um lugar longe das luzes que suavam a carne e faziam brilhar as cervejas. O Veiga! Eu pouco conhecia o Veiga — o Veiga era só o Veiga —, mas o ar rufia-reguila nada me dizia que podia ser homem crente em adivinhos. Depois fiquei atenta. Ele cumprimentava quem passava com os olhos postos nos outros olhos, como um touro à caça de energia. O Camay tem boa energia, gosto muito dele, dizia sobre alguém que passava por ali à procura de massagens. Informação que me fez descobrir que para algumas pessoas há uma linha muito ténue entre videntes e massagistas. Ó Camay, o que tu queres sei eu, vai mazé pedir massagens à tua mulher. Tchiiiiiiii, Pati, olha quem é ela — os amigos do Veiga tinham todos nome de sabonete —, também andas aí? Parece que sim… tu sabes que eu não acredito nestas merdas, mas eu sou uma colecionadora de experiências, e disseram-me que a Marília era A experiência.
“A experiência”. Aquilo ficou no meu ouvido. Que coisas podiam acontecer ali, na tendinha junto ao lago, que ninguém chamava barraca. Porque é que a fila era tão grande quando vinte minutos custavam vinte e cinco euros, se logo ali a uns metros, misturados com as bugigangas, havia jogo de búzios a cinco e uma curandeira a um? Com vinte e cinco euros podíamos curar vinte e cinco feridas, acabar com hérnias e voltar a fazer amor com vinte anos e mais sabedoria. Mas não. O que é que os vinte minutos a vinte e cinco euros da Marília tinham?
Estava disposta a pagar.
O Veiga foi o primeiro a entrar. Nós olhámos para o relógio e começámos a cronometrar.
Cá fora, o Duarte, que não era só amigo do Veiga, fazia contas aos euros. Por hora esta mulher ganha setenta e cinco euros e não passa recibo — o Duarte era polícia e com ele formávamos um grupo de portugueses. Ríamos daquilo tudo embalados pelo libertador do peso da existência — o álcool —, mas estávamos ali; com a habitação e os impostos a extorquir-nos o orçamento e a fazer pouco de uma executante mais esperta.
Até que o Veiga saiu.
Mal tive tempo de olhar para ele e menos ainda para trocar uma impressão. Cá fora a ajudante — devia ter quinze anos, mas podiam ser trinta —, sem pronunciar palavra, gesticula para eu entrar. E eu, obediente, saltei para a entrada, afastei o pano a fazer de porta e meti-me lá dentro.
Fiquei de boca aberta. Espantada com a figura que se apresentava à minha frente. Era uma mulher estranhamente bonita e com idade indefinida; devia ser pré-requisito para coisas alienígenas, pensei. Dava a sensação que podia ter setenta anos ao mesmo tempo que podia ter quarenta. Os novos quarenta: botox, cabelos loiros enormes e fortes, unhas de gel, silicone, um vestido da Chiara Ferragni — rosa-fuxia-licra-pronunciador-de-mamilos —, e uns olhos amarelos de felino.
Perguntou-me: Cartas ou mãos? Eu disse mãos. Depois disse cartas, e depois disse mãos, e depois disse cartas. Cartas! Mas acabei em mãos. Mãos! Ela, paciente e extraterrestre, agarrou-me a esquerda. Vejo aqui a morte de alguém quando tinha trinta e quatro anos, foi em setembro, morreu de desgosto com a vida, suicídio!, e…, chamava-se Glória Guerra. Essa pessoa, sua avó, é a sua proteção — foda-se! Como é que ela sabia daquilo? A sua proteção sofria de problemas depressivos. Tenha cuidado com isso, as emoções! A sua mãe também tem dias muitos escuros e, vejo aqui, problemas nas articulações, também teve aquela bactéria no estômago, sabe? A bactéria? Esteja atenta a isso. Ui, vejo aqui uma grande ausência no passado. O pai. Cresceu muito só. Você cresceu muito só.
Eu já não estava a ouvir mais nada, a não ser uma voz que crescia dentro de mim a dizer-me: Tu és uma menina muito só. Muito, muito só. MUITO SÓ! E, de repente, ali estava eu, numa máquina do tempo, num regresso ao passado sem nunca ter almejado ir mexer nele. Aquela mulher plástica, vinda do futuro, começou a tirar o pó das minhas memórias, e, retroescavadora avançada, levantava os mortos sem autorização, punha-me triste como não era desde aquela altura. Até que se fez silêncio. Já não estávamos no passado. A Marília olhou para mim com uma serenidade e sorriso de Buda, depois apertou um lábio contra o outro. Já está, doce. Eu pergunto: Então e o futuro? Doce, já passaram os vinte minutos.
Saí. Danada.
Intrigada, perguntei ao Veiga como foi. Acertou em tudo!, disse. Eu ripostei: Ela só me falou do passado! Então e o futuro? Ele: Pediste as cartas? Eu: Não! Ele: Eram as cartas!!! Eu: Mas espera, como é que dizes que ela acertou em tudo se ela te falou do futuro? Ele: pôs-me os olhos da desilusão. De imediato diz que eu não fui de coração aberto, por isso ela não viu o meu futuro, só a nuvem negra do meu passado; acrescentou, Estás com má energia.
Eu olhei para dentro de mim e julguei ser um íman para desgraças enormes, quando, até ali, tudo ia bem.
Comecei a entrar numa espiral de negativismo. Concordava com o Veiga. Depois, com raiva, discordava. Depois, com menos raiva, maquinava defesas: Os dias escuros da minha mãe são como os de qualquer pessoa, e os problemas de articulações, claro que tem, está com setenta e cinco anos, ah, a bactéria pode ser azia… quem é que não tem azia? O meu pai foi comerciante, mais ausente, naturalmente! Quem é que não cresce com um dos pilares menos presente?
Mas, como explicava as palavras certeiras sobre a avó Glória Guerra. Não explicava. Como é que aquela mulher sabia até o mês da partida?
Passaram semanas de angústia. Os meus dias começaram a ficar muito, muito escuros e receei que o comportamento suicida fosse hereditário, mesmo não tendo qualquer vontade de me matar. Agora, sentia-me sozinha, um repelente da atração — o amor não me batia à porta. Seria de não ter o coração aberto? Ter uma proteção que preferiu o suicídio não era propriamente uma boa proteção. Liguei num dia qualquer à minha mãe para fazer queixinhas, querendo lá saber dos meus quarenta anos. Foi então que descobri: Oh, filha! A Marília? Quem não conhece a Marília! Agora é professora de teatro, mas em tempos foi massagista da tua avó — Deus a tenha!
@gabirelvas
Na dúvida, escrevo
por Joana Kabuki
“Na dúvida sobre o que escrever, escrevi a verdade.
Na ausência de palavras tenho encontrado abraços.
E quanto ao regresso, esse será o que tiver de ser.”
É que eu não vivo da escrita. Tenho um emprego. Um emprego “a sério”, como diriam aqueles para quem escrever é um passatempo para desocupados. Quer dizer, talvez para esses o meu emprego também não seja bem a sério. Não trabalho de forma rígida das nove às seis, não tenho chefias a quem não reconheço competência, nem colegas indesejáveis. Um emprego desses já tive e dispenso outro, muito obrigada. Tenho um emprego onde trabalho quando há o que fazer, sem cobranças ou pressões, com liberdade e autonomia. E tudo isso é parte significativa do meu salário.
Neste emprego temos uma máxima. Na verdade temos várias, mas para efeitos do exercício interessa a que vou referir de seguida: sempre que tivermos dúvidas sobre o que responder a um cliente, dizemos a verdade. Pode parecer básico, o princípio, mas estaríamos todos a enganar-nos se assumíssemos que essa é a norma nas empresas (e não só). Aconselho vivamente a sua implementação, asseguro-vos que já nos poupou muito dissabores.
É com base nessa máxima que aqui me têm: deixei resvalar o prazo de escrita deste texto. Sei, há muito tempo, que nesta edição da newsletter literária seria publicado um texto meu. Sei, porque fui eu que escolhi o mês em que o faria, sabendo de antemão o tema sobre o qual deveria discorrer. Estava crente na disponibilidade que teria mais perto da data, permitindo-me dedicar-lhe o carinho e atenção que este Clube e este espaço me merecem. Só que o tempo passou. E com o tempo a vida aconteceu. E o inesperado da vida aconteceu, que é sempre a forma que a vida tem de nos dizer que acontece. E eu, péssima a adaptar-me ao que sai da rotina, perdi o tempo e o Norte. À gestão do atarefado quotidiano e do difícil inesperado, meteram-se umas férias, fruto de um sonho que há muito rondava o nosso imaginário. Umas férias que não davam jeito nenhum (isto a existir alguma coisa como “umas férias que não dão jeito nenhum”). Conclusão, aqui estou eu. Numa ilha grega perdida no mapa, sem computador, a escrever à mão o meu texto, depois de alguém, bem mais responsável do que eu, me ter relembrado que era tempo de o fazer. Ando, por isso, há dois dias a pensar na abordagem. À espera daquela faísca que apanha inadvertidamente o escritor e lhe domina corpo e alma até surgir a palavra fim. Às vezes é uma simples palavra ouvida por acaso, uma imagem vista de relance, uma sensação que chega sem se saber muito bem de onde. Ao escritor tudo serve para começar a desfiar palavras. Tenho a dizer-vos que essa faísca não surgiu (embora esteja quase certa de que já desconfiavam). Não com a força necessária para se tornar história. Mas ser escritor também é isso. Aceitar que, por vezes, nos faltam as palavras. E é isso que me tem acontecido, por estes dias. Faltam-me palavras que me ajudem a gerir a emoção destes dias sonhados e da vida a acontecer. A vida que me espera quando regressar e à qual terei de me adaptar, com a rapidez que não possuo para a mudança.
Na dúvida sobre o que escrever, escrevi a verdade.
Na ausência de palavras tenho encontrado abraços.
E, quanto ao regresso, esse será o que tiver de ser.