ORGANIZAÇÃO: RITA CRUZ | REVISÃO: LÉNIA RUFINO e MARIA BRAVO | MONTAGEM DE VÍDEO: FILIPA FONSECA SILVA
Este mês, as pequenas criações literárias que normalmente partilhamos nesta newsletter são dedicadas a uma das duas razões iniciais que nos juntaram: sermos MULHERES. E, porque é uma data especial, desta vez escrevemos quase todas e os textos saltam do ecrã para o papel. Não vão encontrá-los aqui, mas numa revista incrível que vos vamos apresentar este sábado, dia 16, às seis da tarde, na Casa do Comum, em Lisboa, com direito a bolo.
Sendo que não estão aqui os textos, decidimos contudo contar-vos qualquer coisa sobre eles. Onde nos inspirámos, ou quem queremos com eles honrar. Cliquem na imagem e ouçam:
Antes de vos deixarmos com alguns pequenos excertos, acrescentamos ainda que a revista, além de estar à venda na festa de dia 16, pode ser encomendada através do nosso email, ou adquirida nas seguintes livrarias, a partir da semana que vem: Ler Devagar Chiado (Lisboa), Greta (Lisboa), Arquivo (Leiria), SNOB (Lisboa), Almedina CCB (Lisboa), Xylocopa (Ílhavo), Fonte de Letras (Évora), Centésima Página (Braga), Unicepe (Porto), Flâneur (Porto), Letras Lavadas (Ponta Delgada). É uma edição única, por isso corram, antes que esgote!
A magnífica capa da revista é da responsabilidade da Salete Pereira e voltamos a colocar aqui o link para que visitem o trabalho dela: @tango.drawings.
Para aguçar o apetite, deixamos-vos então com alguns excertos. Boa leitura!
A separação
Por Ana Cristina Silva
«A dor intensificava a consciência de que o meu erro fora ter feito do meu marido a minha vida. Transformara-me numa árvore enlaçada com outra árvore, as raízes implacavelmente enleadas, de que só me conseguiria libertar com um esforço de violência. Desde que Tomás saíra de casa, vivia enclausurada no sofrimento. Amar apaixonadamente durante vinte e cinco anos, e ser abandonada, é como ir num barco e enjoar: sentes-te a morrer, mas a tua mágoa nunca é percebida pelos outros como a devastação que realmente é. Mergulhar no martírio do desamor transforma em dissolução todas as outras experiências, e o futuro num eterno vazio. Sobretudo, quando temos mais de cinquenta anos e a idade é um muro à nossa volta, que nos impede de sermos vistas, observadas, desejadas.»
Uma boca que nunca dará à luz
Por Cláudia Lucas Chéu
«Dizer que gosto de sexo é pouco. Gosto mais de sexo do que da minha família toda, excepção feita aos meus três gatos, que também fraternizam com o seu próprio cio e me moem o juízo com miados excruciantes. Não os mandei castrar, não quis condená-los à minha sina — a esterilidade dá cabo de qualquer animal, seja gato, cão ou mulher, como eu. Não é que me faça diferença, nunca quis ter filhos, mas o meu último companheiro queria. Nada pude fazer, deste meu corpo nenhum outro sairá.»
A mulher de burca
Por Cristina Drios
«Exigem-te que sejas irrepreensível, perfeita, intocável. Mais tarde ou mais cedo, pagarás o preço. Mais tarde ou mais cedo, o cenho franzido, a censura velada, a crítica enviesada, o insuspeito telefonema controlador, o ciúme, o despeito, o desdém ou a troça, hão-de chegar. A falta de respeito. Isto, na forma meiga. Da boca do namorado, do marido, do patrão, do colega, do vizinho, do suposto amigo. Porque tu ganhas mais, a casa é tua, o carro é teu, viajas sozinha, fazes o que gostas, só fazes o que queres, podes conhecer outra pessoa, outras pessoas. Não te iludas. Nunca percas o rumo: a vida é tua.»
Lava
Por Gabriela Ruivo
«O marido também a distraía. Quando chegava, antes de a beijar, já a mão se lhe tinha esgueirado para o meio das pernas. E depois segredava-lhe ao ouvido, quero-te. Rápido e fulminante. Ela deixava-se manipular. Pensava nas mulheres no cabeleireiro queixando-se da falta de interesse dos maridos, dos serões passados em frente ao ecrã da televisão, o meu marido às vezes é mal chega a casa, nem me deixa tirar o avental. Nunca se demorava a tecer-lhe beijos em volta do pescoço, nem lhe percorria os segredos escondidos debaixo da pele até de si mesma, e ela também não se demorava a pensar nisso, pois a dor que a dividia em duas logo adormecia ao som dos grunhidos dele e, por um momento, sentia-se finalmente inteira.»
Mel
Por Lénia Rufino
«Amélia só tem mel no nome. No corpo, o diabo em forma de tempo. No passado, todos os segredos. Amélia já foi tantas coisas. Esqueceu-se de quase todas. Um dia, dizem-lhe, foi a mulher que fez cair uma nação. Exageros, crê. Talvez se recorde de um momento ou outro em que dúvidas se ergueram à sua passagem, mas não mais do que isso. Acredita ter havido um tempo em que era mais presente, menos etérea. Mais mulher, menos memória. Ou falta dela. Amélia tem mel no nome, mas não se lembra de como se chama.»
Simplesmente mulher
Por Lídia Praça
«A Simplesmente Maria, cheia de graça e simplicidade, foi um fenómeno de audiências na década de 70. Era uma estória em forma de folhetim radiofónico que, entre 73 e 74, trouxe meio Portugal de rádio colado ao ouvido para não perder a vida de uma jovem de 20 anos, extremamente humilde, que deixara a sua aldeia natal para ser criada de servir em Lisboa. Na capital, viveu um romance com um jovem de boas famílias, o que era condenado pelos costumes da época. A radionovela teve um enorme sucesso numa parte significativa da sociedade portuguesa, na época já em transformação.»
A menina-mulher
Por Maria Francisca Gama
«Ao longo da sua infância e já no início da adolescência, a consciência de que era mulher veio dos gritos exteriores e só depois se materializou com o grito ensanguentado do seu corpo. Os pais diziam-lhe mais vezes do que ao irmão para ter cuidado, e incumbiam-no de a proteger — ele não ligava, era um miúdo tal qual ela era, mas a assunção de que ele seria capaz de cuidar dela e do reverso ser impensável causava-lhe estranheza —, e depois andavam os dois na rua e ninguém lhe dizia coisas a ele e a ela perguntavam-lhe se o pai era terrorista (o que a preocupava). Ou diziam que eram ourives (o que lhe causava surpresa, dado que não ouvia o seu pai a gritar pela rua que era engenheiro).»
Incríveis 🥺