ORGANIZAÇÃO DA NEWSLETTER: GABRIELA RUIVO | REVISÃO: JOANA KABUKI | TEXTOS: MAFALDA SANTOS, RITA DA NOVA, CARLA M SOARES E GABRIELA RUIVO
Antes das alterações climáticas, usava dizer-se que o mês de agosto tirava o primeiro dia para si e os oito seguintes eram a recapitulação dos primeiros oito meses do ano, até voltarmos, assim, ao tempo de verão. O mês de agosto podia conter tanto os calores dos trópicos como as monções ou os gelos polares, e talvez esse contraste climático seja o mais adequado para descrever o humor da nossa Newsletter Literária deste mês, cujo tema é o gelado - aquele que se degusta com prazer nos dias de calor, mas também o outro, uma massa de ar frio que nos transporta para abismos insondáveis da alma humana.
Boas leituras!
Clube das Mulheres Escritoras
O Menino Sem Nome
por Mafalda Santos
“Era um cone de gelado perfeito. Então sentiu o pequeno botão lateral que faria acender a luz de morango, baunilha e chocolate, e desejou com toda a força do seu coração poder acendê-la.”
Por um gelado valia bem a pena ser corajoso.
O menino, assim era chamado por todos como se não tivesse nome, fora entregue aos cuidados da avó, que o recebera de espírito e braços contrariados, por ser demasiado velha e pobre e porque, à semelhança do que sentira quando fora mãe, não achava a menor das graças àquelas criaturas estridentes e peganhentas, ávidas de atenção e ternura.
Não fora talhada para isso. Era feita de uma massa diferente, sem pitada de levedura maternal.
No entanto, vira-se obrigada a aceitar a criança em casa para não ser alvo do falatório das vizinhas, que mais do que certo a cobririam de infâmias, daquelas que se colam à pele e nunca mais voltam a sair por muito que uma pessoa esfregue.
A filha deixara-lhe o menino à traição, durante a noite, e partira para o estrangeiro em busca de emprego. Juntamente com a criança deixara apenas um saco com roupas e uma carta, prometendo voltar para buscá-lo assim que tivesse a vida organizada.
Ali na aldeia e em todas as terras em redor, não havia hipótese de encontrar um trabalho que desse à jovem o menor vislumbre de futuro, para não falar de que o ambiente social era pesado, desconfiado e supersticioso, carregando o ar do terrível éter da ignorância.
Volvidos três anos, a rapariga não voltara e há mais de um que deixara também de telefonar, provavelmente por, vencida pela vida, ser incapaz de lidar com o som rumorejante da culpa, que cabia no fundo da voz inocente do menino.
Como consequência destas coisas, a criança tinha uma natureza tímida e tantas tinham sido as vezes que ficara de castigo por dizer algo que a avó considerara uma má-criação, que praticamente não falava.
De noite sentia dificuldade em respirar e era atormentado por uma tosse seca e infatigável que não o deixava dormir. Nos raros dias em que o corpo lhe concedia tréguas, acordava encharcado em suor, tomado por terrores noturnos. Tinha horror ao escuro, mas a avó proibira-o de ter uma lâmpada de presença, garantindo-lhe que a luz à noite indicava o caminho ao diabo.
— Credo, este menino tem de ser visto pelo médico! — exclamou um dia a vizinha, costureira de profissão.
Tinha ido lá a casa, depois do jantar, entregar uma conta da luz que fora extraviada para a sua morada na porta ao lado, e não pôde deixar de sentir dó pela criança.
— Geme e tosse como um condenado, ‘tadinho! Não pode ser…
A avó, tolhida muito mais pela vergonha do que pela má consciência, levou o neto ao médico no dia seguinte e depois de uma hora no autocarro e três na sala de espera do centro de saúde, lá tiveram o diagnóstico, seco e direto como uma bala.
— O menino precisa de ser operado aos adenoides, imediatamente.
O médico deitou à avó um olhar chocado. Não percebia como era possível ter deixado a situação chegar àquele ponto.
— Isto é grave. — declarou. — Esta criança está esgotada do esforço que faz para respirar. Nunca em toda a minha carreira vi uns adenoides deste tamanho. De certeza que ele já se queixa há muito tempo. Vou ligar para o hospital, a ver se o conseguem operar entre hoje e amanhã.
A avó torceu as mãos e o menino estremeceu dos pés à cabeça, sem dizer palavra.
— Não tenhas medo. — tranquilizou-o o médico. — A operação não custa nada e depois, durante uns dias, vais poder comer gelados a todas as refeições.
O olhar do menino iluminou-se. Apesar de só ter provado duas ou três vezes, gelado era a melhor iguaria de que tinha lembrança. Com uma recompensa assim valia a pena ser corajoso.
Uma ambulância dos bombeiros transportou-o para o hospital e na manhã seguinte foi operado por uma médica jovem e de sorriso fácil, que antes de lhe administrar a anestesia disse:
— Vai correr tudo bem. E quando acordares tenho uma prenda para ti.
O menino sorriu e deixou-se afundar lentamente.
Quando abriu os olhos, pareceu-lhe não ter passado tempo nenhum. A médica sorria na mesma posição.
— Olá! – cumprimentou-o. — Foste muito valente e por isso aqui está o teu prémio.
Do bolso da bata branca tirou uma caneta com forma de cone de gelado que com um simples toque se transformava numa lanterna, irradiando luz das três bolas de sabores diferentes.
— Gostas?
O menino agarrou na caneta com a sua mãozinha pequena e anuiu com uma expressão de encantamento.
— Gosto muito.
Voltaram para casa de autocarro e à chegada foram recebidos pelas vizinhas que repetiam a palavra “deus coordenada em pregões diferentes e tantas vezes repetidos que já não significavam nada: «Correu tudo bem, graças a Deus.» «Vais ficar bom, se Deus quiser.» «Deus queira que não tenhas mais nada.» «Que Deus vos proteja!» «Só Deus sabe o que teria acontecido se a tua avó não te tivesse levado tão depressa…» «O futuro a Deus pertence…»
Mas, apesar do gáudio que sentiu com este acolhimento e ao contrário de todas as recomendações dos médicos, a avó não comprou um único gelado.
— Comes sopa fria que faz o mesmo efeito. — disse. — Não sou rica para andar a gastar dinheiro nessas parvoíces.
O menino murchou novamente.
Nessa mesma noite, sozinho na cama, invadido por um sentimento grande demais para que o pudesse compreender, o menino chorou. Foi então que se lembrou da caneta que deixara no bolso dos calções.
Envolto na mais total escuridão alcançou-a e apertou-a entre os dedos, com satisfação. Era um cone de gelado perfeito. Então sentiu o pequeno botão lateral que faria acender a luz de morango, baunilha e chocolate, e desejou com toda a força do seu coração poder acendê-la.
Mas, e se o diabo aparecesse?
O desejo foi mais forte do que o medo e com um movimento tão leve que não chegaria para importunar um mosquito, fez-se luz na pequena lanterna.
E o Diabo apareceu.
Primeiro o menino viu uns olhos vermelhos, depois duas patas de cabra e uns cornos retorcidos e pontiagudos.
— Como te chamas? — perguntou-lhe o diabo, na sua voz serena de caverna.
— Daniel. — respondeu o menino, transido pelo espanto.
— Quanto anos tens, Daniel?
— Cinco.
— Como está a tua garganta?
— Dói-me um bocadinho.
— Come o gelado, vais sentir-te melhor. — garantiu o diabo.
Daniel sentiu um cheiro inconfundivelmente doce a entrar-lhe pelas narinas e verificou que a caneta era agora um gelado de verdade. Comeu com prazer, lambuzando a cara e os dedos, como já há muito lhe era devido, e sob o olhar intrépido do diabo sentiu pela primeira vez em muito tempo o peito a relaxar e os pulmões a encherem-se de ar leve e regenerador.
Não voltou a ter terrores noturnos e de cada vez que a escuridão da noite, da avó ou da aldeia o cobria, acendia a lanterna e esperava.
Zabajone, Crema & Gianduja
por Rita da Nova
“(…) os gelados são para ser comidos em todas as estações menos no verão, porque derretem mais depressa e somos forçados a devorá-los, deixando de os saborear.”
Saem do museu com a mesma sensação de um dia bem passado na praia ou no campo: as horas atropelaram-se umas às outras, o tempo passou sem que tivessem necessidade de estar constantemente a acompanhá-lo através dos ponteiros do relógio. Apesar de já ter terminado o turno, Giulia não parece pronta para despir a postura de guia.
— Quando os meus pais ainda moravam aqui na cidade, íamos todos os meses ao museu e a visita só terminava depois de um gelato na Pepino. — Alice não fazia ideia de que Giulia tinha crescido em Turim, achava que era mais uma italiana de outro ponto qualquer do país, a tentar dar os primeiros passos numa carreira que a forçava a estar longe de casa.
Sente-se estúpida: já podia ter aproveitado mais o conhecimento que a colega de casa tem sobre a cidade. A avó dir-lhe-ia que «mais vale tarde do que nunca», então decide ignorar as horas e abraçar a ideia de comer um gelado antes de jantar. Se Giulia fez isto durante tantos anos é porque deve ser uma boa experiência.
Alice já tinha passado várias vezes pela Pepino, na Piazza Carignano, mas não fazia ideia de que se tratava de uma instituição da cidade. Tem vontade de perguntar a Giulia o que significa Pepino em italiano, para lhe dar conta de mais um falso amigo entre as duas línguas: em português, um pepino é um cetriolo, assim como, em italiano, morbido é suave. Contudo, Giulia fala com tanta vontade, que Alice não tem como encontrar o momento certo para a interromper.
— Agora já há várias gelaterie novas, muito modernas, mas quando eu era pequena toda a gente vinha aqui e eu nunca larguei esta tradição. Venho cá sempre que mostro o museu a um amigo ou quando tenho um mau dia.
Como que para confirmar o hábito, Giulia pega-lhe na mão e leva-a até ao expositor dos gelados. Em vez de encontrar os diversos sabores expostos com cor — como acontecia quando iam de férias para o Algarve e o pai permitia um gelado depois de jantar —, Alice dá de caras com recipientes metálicos fechados. É suposto ter de escolher o que quer comer sem ver primeiro o aspeto?
— É assim que sabes que estás num sítio com qualidade. — Giulia parece ser capaz de traduzir o seu ar confuso e oferece-lhe uma explicação — Os gelados que estão à vista ficam todos ressequidos, perdem propriedades, deixam de ser bons. Ao contrário do que acontece quando estão bem fechados, como aqui.
Não perde muito tempo a explicar-lhe a ciência por detrás da conservação do gelado, prefere fazer-lhe uma lista dos seus sabores favoritos, para que Alice tenha toda a informação do seu lado antes de decidir. É importante que faça uma escolha acertada, a combinação perfeita entre o que é uma especialidade da Pepino, o que são os seus gostos e os produtos que são da época, que estarão mais frescos.
É como se estivessem de volta à Mole Antonelliana e aos corredores do museu do Cinema: a colega de casa aponta para as plaquinhas com o nome de cada sabor e oferece uma pequena explicação:
— Zabajone. O «j» lê-se como se fosse um «i». Também há quem diga Zabaglione, mas aqui é assim que se escreve. Uma mistura de gemas, açúcar e vinho Marsala. È meraviglioso.
Alice não tem muita vontade de experimentar este, mas coloca uma máscara de interesse para que Giulia não fique triste, já que fala com tanta paixão.
— Gianduja. A mesma coisa em relação ao «j». É a origem da Nutella, mas mil vezes melhor. Se gostas de chocolate e de avelã, é o sabor certo para ti. — Agora sim, Alice começa a interessar-se um pouco mais.
Passam por todos os sabores, cada um merece o devido destaque. Pistacchio, Nocciola, Stracciatella e Fior di Amarena. E depois os sorvetes de fruta: Zampone, Fragola, Limone. Para não deixar a portuguesa sem qualquer orientação, Giulia chega-se à frente e pede primeiro: um copo médio (sempre copo, nunca cone!) com Zabajone e Crema. Alice segue o exemplo, aponta para um copo pequeno e esclarece que quer só com Gianduja. A ideia de comer grandes misturas antes do jantar faz-lhe confusão e Giulia não a julga, mas faz questão de relembrar de que o preço do copo é o mesmo, independentemente da quantidade de sabores diferentes que leve.
Caminham sem pressa até casa, a conversa interrompida pelo gosto do gelado. Alice é transportada para casa por breves instantes, primeiro porque se lembra de mais uma das expressões da avó — «Está tão bom que perderam o pio!» —, que proferia sempre que se havia esmerado na cozinha e a família deixava subitamente de falar, como se os instintos mais primários viessem ao de cima e não conseguissem fazer duas coisas ao mesmo tempo.
A outra recordação chega coladinha à primeira, pôs o pé na porta e aproveitou a brecha para entrar. É o pai que surge e lhe traz um dos ensinamentos da infância, que já havia guardado numa gavetinha da memória: os gelados são para ser comidos em todas as estações menos no verão, porque derretem mais depressa e somos forçados a devorá-los, deixando de os saborear. Como será que está o pai, lá no outro lado do mundo, ainda mais longe de casa do que ela? Ficaria orgulhoso se a visse comer um gelado na primavera?
Freeze-frame
por Carla M. Soares
“O vagalhão gelado enrolou-se dentro dela, encheu-lhe os ouvidos, o peito. Quebrou com um rugido, levou-a em vez de o levar a ele, ficou a rodopiar num turbilhão de fúria.”
O dia estava gelado, o mar estava gelado, o vento impossível. Duas das crianças brincavam no meio da tempestade de areia, rajadas que picavam como agulhas. Deviam ter pele de lagarto. A terceira estava vestida, enrolada numa toalha, encostada a ela, como uma pessoa normal numa circunstância daquelas. Ela também estava vestida, por trás de um para-vento que não parava coisíssima nenhuma, o vento não tinha direção nessa manhã. A imagem cristalizou-se na sua cabeça, parada como numa moldura, um instante num longo filme, ínfimo e gigante como qualquer das minúsculas pedras que as agrediam: o dia agreste, os dois filhos a saltar ao vento, livres, belos, loucos, ela e a filha encolhidas, mais adiante os amigos. Amigos do marido, feitos seus à força de lhe ter cedido a vida.
Tinha as coisas quase todas arrumadas, pronta para se pôr a mexer assim que os dois malucos começassem a sentir frio e a chatear o pai. Deitou-lhe um olhar. Estava à beira mar, entretido na conversa. Devia ser dele que os dois pequenos, o mais velho e a mais nova, tinham herdado a pele de crocodilo. E o sistema de aquecimento. Um brutal sistema de aquecimento, de certeza, ele já os tinha molhado aos dois com baldes de água e ali estavam, a secar ao vento frio. Ela até por dentro estava gelada.
Tinha tirado o livro, em três segundos acumulara areia nas dobras da lombada. Consolara-se com a ideia de poder ler na praia, ao menos isso. Mas só um pouco, que era preciso vigiar as crianças, vigiá-las o tempo todo, o pai esquecia-se. O pai era o divertido, era o do jogo da bola, o dos mergulhos. Quando lhe apetecia, porque também era o das longas conversas com os amigos, de uma ida “rápida” lá acima ao bar. A ela competia-lhe repetir no lugar de férias o que se fazia no lugar do quotidiano: assegurar que as crianças estavam alimentadas, limpas, seguras. O livro, o título leve escolhido zelosamente para a fazer esquecer o peso dos outros dias, precisava de entrar nos intervalos. Eram poucos, os intervalos, a meio das férias ainda os protagonistas mal se tinham conhecido.
— Mamã, quer’ir embora. — pediu a única dos seus três filhos que tinha uma dose saudável de terminações nervosas.
— Já vamos, bebé.
— Não sou bebééé! A Nica é qu’é bebé. — protestou, a voz a subir até ser um guincho agudo. Ela suspirou.
— Tens razão, a Nica é que é bebé. Tu és quase uma mulher.
— Não sou mulheeeer! Tu é qu’és mulher, tens maminhas.
— Tenho? Onde? Onde? Socorro, a mamã está com maminhas!!
A pequena desatou a rir. Pequenas gargalhadas como o repicar de um sino, que lhe faziam sempre repicar o coração. O vento levou-as, mas, durante uns minutos, a filha deixou de protestar.
— Mamã, tenho fome.
O rapaz, claro. Tinha sempre fome. E atrás dele a mais pequena, trôpega ainda, “mamã, tenho fome”. Tinha fome quando o irmão tinha fome, sono quando o irmão tinha sono. Eram uma unidade impressionante, uma espécie de bicho com dois corações, mas um cérebro: o do filho. O pai achava graça, ela não. Era ela quem geria a irritação da pequenina quando o irmão estava na escola, a sua ansiedade, e depois a irritação do irmão quando ela se lhe colava aos calcanhares por demasiado tempo. Porque ele era um poço de paciência, mas tinha mais que fazer, ela não. E isso podia aplicar-se aos filhos ou ao casal, dependendo da perspetiva.
Sacudiu a cabeça. Não podia pensar nisso nesse momento. Ficava gelada por dentro sempre que lhe ocorria que a culpa era sua: decretara que a independência ganha a pulso podia ser cedida, em nome das três criaturas que um dia teriam a sua vida – e ela vida nenhuma.
— Queres uma banana?
Distribuiu bananas. Ouviu-os queixarem-se porque as bananas tinham areia. Tudo tinha areia. Ela tinha areia, por fora, por dentro, a escorrer-lhe entre as engrenagens dos dias, areia fria e áspera. O marido continuava a conversar. Era sempre assim que o imaginava, na sua cabeça treinada para conceber filmes... Não, agora já não, isso era dantes, agora sobrava este pequeno exercício involuntário, em que gelava instantes no tempo, freeze frames da sua existência. O dele era este, o frame dos seus verões, calor ou vento ou nuvens no céu, a praia, sempre aquela praia porque era a praia certa, ele de costas bronzeadas, o calção certo, a conversa certa, qualquer coisa de negócios, ou férias, ou mulheres, queria lá saber, ondas a quebrarem-se à sua frente, vagalhões ruidosos que nem permitiam aos miúdos um mergulho decente. Pensou se o marido se aguentaria com um, no que faria da vida se uma dessas ondas o levasse. Se seria pior, melhor. Se ainda o amava, que importava isso, eram uma família. Eram uma unidade bonita por fora, às vezes bonita por dentro. Ela não. Ela já não era bonita por dentro. O seu próprio frame era de um espaço vazio, gelado. E agora tinha todos os filhos a protestar.
— Vamos embora, mamã? ‘Tá frio.
Finalmente! O vento penetrara até a carapaça dura do rapaz.
— Vai dizer ao pai. — pediu-lhe. Ele correu para o pai, puxou-lhe o braço, uma, duas vezes, falou, ouviu, voltou.
— Diz que já vamos. ‘Tá a falar.
O vagalhão gelado enrolou-se dentro dela, encheu-lhe os ouvidos, o peito. Quebrou com um rugido, levou-a em vez de o levar a ele, ficou a rodopiar num turbilhão de fúria. Um entusiasmo peculiar roubou-lhe o fôlego, há quanto tempo não se sentia assim. Vestiu os miúdos.
— Vamos comer um gelado e vamos para casa.
Os filhos saltitaram à sua volta de bracitos no ar, o vento a fazer tropeçar a pequenita.
— Piscina!! Pis-ci-na! Pis-ci-na!
O filho parou um instante.
— E o pai?
Quase encolheu os ombros. Conteve-se, sorriu.
— Se quiseres, vai dizer-lhe que vamos para casa. O amigo dá-lhe boleia.
O miúdo hesitou, correu para o pai, puxou-lhe o braço, uma vez, outra, falou, falou outra vez, voltou, pegou na mochila. Vinha irritado.
— O pai não ouviu. — rabujou.
Dessa vez, ela sorriu mesmo.
— Deixa lá, mando-lhe uma mensagem. — E ele dava-lhe o tratamento gelado durante umas horas, depois os miúdos acabavam por entretê-lo ou algum amigo ligava e ele esquecia-se. Ela não, ia acrescentar mais aquele frame à galeria fria da sua relação. — Nós vamos comer um gelado!
Mente congelada
por Gabriela Ruivo
“Vês o bebé, a criança. O tempo em que o carregavas no colo, em que a pele dele era a tua. O tempo em que ele era um feto translúcido dentro do teu ventre.”
Os pés. A primeira coisa que vês são os pés. As meias às riscas. Depois as pernas longas, esguias, balançando ligeiramente. As costas hirtas, e é nesse momento, quando o teu olhar se demora nos ombros, sem coragem de focar o pescoço torcido, de lado, num ângulo perverso, que as tuas pernas cedem. Escorregas, apenas. Ficas sentada no chão. Não sentes o corpo, não sentes o chão alcatifado debaixo de ti. Encostas-te à porta que, entretanto, deves ter fechado, sem dar por isso. Fechas os olhos. Quando os abres, ele ainda lá está. O corpo balançando ligeiramente. Deve estar gelado. O sol desceu e um raio entra pela janela, uma luz alaranjada que estilhaça o vidro numa profusão de arco-íris. O teu olhar fica preso nessa luz. Na beleza súbita. Recordas uma cena na praia, o mesmo arco-íris nas pestanas, o mar a reflectir o sol poente, a mesma luz laranja, e ele, pequenino, um ano teria, as mãozinhas nos teus dedos, os pezinhos explorando a areia, as perninhas no jogo precário do equilíbrio.
É preciso ver se ainda respira, fazer massagem cardíaca, respiração boca-a-boca, chamar a ambulância. Precisas de um banco, um escadote. Também podes empurrar a cama. Procura uma tesoura. Na secretária, o computador continua ligado, terá deixado alguma mensagem? Ou uma carta em cima da mesa? Ou nada.
O corpo não te obedece. Vês as imagens passarem, como no cinema. Uma tesoura não, a corda é grossa, talvez uma faca da cozinha. Corda? Ainda nem viste bem, não tiveste coragem. Como estará a cara dele? Os olhos revirados? Abertos? Fechados? E o corpo, gelado? Cairá com estrondo? Se é que tens forças para cortar a corda.
Daqui só consegues ver as pernas, os pés enfiados nas meias às riscas. Balançando ligeiramente, como um pêndulo. E a luz estilhaçada no vidro da janela.
É preciso fazer alguma coisa. Se não te consegues levantar, pelo menos chama uma ambulância. O telefone? Ficou na mala, pendurada no cabide da entrada. Mas o telefone dele deve estar por ali, em cima da cama ou da secretária.
Não te mexes. Talvez isto seja um sonho. Daqui a pouco vais acordar e suspirar aliviada. Agora a luz bate nas meias às riscas, as que tu mesma compraste. Lembras-te do momento em que optaste pelas riscas, gostaste do padrão, e o material era bom, macio, suave. Pensas em estender a mão e alcançar as meias, depois sentes um arrepio, és incapaz de dar um passo, e a ideia de tocar naquele corpo parece-te insuportável. Aquele corpo que balança suavemente, pendurado pelo pescoço, ainda nem olhaste para cima para ver onde raio ele se pendurou, nem como fez aquilo, de repente imaginas o corpo a cair arrastando o estuque do tecto, se ao menos isso acontecesse podia ser que o marasmo te passasse e te conseguisses erguer, abeirar-te dele, ver se ainda respira...
Mas há quanto tempo estará ali? Já não lhe deve correr sangue nas veias nem ar nos pulmões. A pele gelada. É tarde para qualquer tentativa de reanimação. É tarde até para chamar a ambulância ou fazer seja o que for. E se ainda algum sangue correr, se ainda restar vida no peito do teu filho, o melhor é não lhe mexeres. Se cair mal pode partir o pescoço e aí pronto, não haverá salvação possível.
Se bem que o pescoço já deva estar partido, pelo ângulo que daqui consegues entrever, sem olhar, os teus olhos param nos ombros, estancam, dá para adivinhar um desalinhamento nos ossos, ainda que incerto.
Um tronco de árvore balançando. Um território estranho. Gelado. Algo que não te pertence. Apenas umas costas, uns ombros, duas pernas, dois pés, duas meias às riscas. É tudo o que sobra daquele corpo que saiu de ti. Talvez os olhos estejam abertos, fixos na mesma luz que encandeia os teus. E o nariz, e a boca? As mãos? Os braços? O peito, o coração?
Porventura ainda há tempo de percorreres o corpo gelado do teu filho. Há quanto esse corpo não te pertence? Vês o bebé, a criança. O tempo em que o carregavas no colo, em que a pele dele era a tua. O tempo em que ele era um feto translúcido dentro do teu ventre. Há quanto não vês o corpo nu do teu filho? Um menino-homem que cresceu para lá de todos os limites. Para lá das fronteiras do teu corpo. Para lá de ti.
Um pensamento obsceno rasga-te a mente, o tesão dos enforcados, será que aquele corpo estranho, estrangeiro, imóvel, ostenta no centro uma erecção? Uma provocação? Mas como podes pensar uma coisa destas? Como podes ainda não ter gritado? Pedido por socorro?
A voz entalada, a voz que não sai. O corpo que não se move. O pensamento que não descansa. O pensamento que corre solto e se recusa a ir pelo caminho previsto. Nunca imaginaste que perante este momento só te sobrasse este silêncio, esta ausência, este contraste entre acção e pensamento. Quem sabe morreste também. Talvez a morte de um filho leve com ele a mãe. O corpo gelado da mãe. Porventura é o corpo o actor desta peça.
Que nome se dá às mães que perdem os filhos? E isso que importa? O teu filho escolheu este caminho, este buraco negro, este salto no escuro. Não queres pensar nisso. Que diferença faz? Sabes que és culpada, mas sempre o serias. Culpada por não o teres protegido, ou teres protegido demais, por teres avisado ou não teres avisado, por teres dado ou não teres dado. Que motivos haveria para isto? E algum dia os entenderás? Esta cadeia de pensamentos cansa, pesa, uma bola de chumbo que te sufoca devagarinho. Melhor voltar atrás. Ficar quieta. Apesar de quereres gritar, de quereres fazer todos os gestos necessários, nada acontece, o ar está mais espesso, pesa-te nos ombros, tudo está imóvel e tu, congelada nessa imobilidade que engoliu o mundo, apenas o corpo do teu filho balançando muito suavemente, poderia ser um embalo esse balançar, poderias adormecer nessa cadência, poderias ficar assim para sempre, o olhar preso nos estilhaços, o vidro da janela, uma profusão de arco-íris.