Damo-vos as boas-vindas à nossa primeira newsletter literária, cujo tema, já que estamos em junho, só poderia ser um: Festa. Dos santos populares aos convívios organizados em casa, passando por destinos tão longínquos quanto Herat, no Afeganistão, reunimos seis textos que prometem fazer-nos olhar para as festas de (pelo menos!) seis perspetivas diferentes.
Como as introduções se querem curtas, resta-nos desejar-vos uma boa leitura!
Obrigada por continuarem a acompanhar-nos,
Clube das Mulheres Escritoras
O escândalo da alegria
por Cláudia Lucas Chéu
“Sabemos, de fonte segura, que a alegria está sempre condenada. Todas as histórias acabam mal porque no fim da história, de todas as histórias, está sempre a morte.”
Ergo a taça de champanhe borbulhante e brindo aos que vivem escandalosamente a alegria. Que não se inibem por vivê-la plenamente, sem receio de ofender o pudor dos melancólicos, sem receio de ser um mau modelo para intelectuais agarrados à tristeza como drogados à heroína. Muitas vezes a alegria ofende e causa desordem ao modelo da angústia. Ser triste tornou-se normal, só nas crianças é que este padrão não existe. As crianças têm uma vocação para a alegria. Depois crescem e a alegria parece um talento falhado, uma solução não praticável. Como se a tristeza fosse a academia certa, aquela que nos vai fazer ter um salário certo todos os meses, e a alegria uma opção académica duvidosa, que dá prazer mas que não paga as contas. Qual terá sido o momento nas nossas vidas em que nos passámos a escandalizar com a alegria, a tratá-la como um presente envenenado? E consolamo-nos com o mal que lhe sucede: “Isto já estava a correr bem de mais. Eu logo vi.” Somos a nossa própria ave agoirenta, o abutre à espera da putrefacção da alegria para a devorar. Estranhamos as coisas boas, desvalorizando com o carimbo do efémero muitas das coisas que podem valer a vida inteira. Será que é porque antevemos sempre no fim da linha a pior das sortes, a morte? Sabemos, de fonte segura, que a alegria está sempre condenada. Todas as histórias acabam mal porque no fim da história, de todas as histórias, está sempre a morte. Mesmo que a inventemos sob formas belas, como Saramago no livro As Intermitências da Morte, em que a morte é uma mulher que toca Bach no violoncelo. Ainda assim, por sabermos que as histórias no último parágrafo da vida acabam mal, não deveríamos congratular-nos por termos a possibilidade de viver a alegria? Porque será que a alegria soa a pecado ou erro e a tristeza a coisa certa e segura? Mas há mais: quando todos à nossa volta parecem tristes, surge também a vergonha. Soa escandaloso estar alegre ao pé de pessoas tristes. Quando se é criança, é difícil viver com adultos tristes. Sente-se a imposição da tristeza. Não se pode cantar ou rir porque parece que perturba e ofende o escudo melancólico a que se votam as pessoas crescidas. E fica-nos na cabeça esse modelo, que ser grande é ser sério e que apenas se deve ser pontualmente alegre. A alegria está confinada a uma quota mensal que não deve ser excedida se não quisermos parecer tolos. Aprendemos que a vida é sisuda e difícil, e a alegria reservada para as ocasiões especiais.
Por isso, brindo a todos os escândalos da alegria e rio-me, rio-me sempre que posso, escolho ser alegre em vez de triste.
Uma Festa Longínqua
por Rita Cruz
“Recorda-se de estar encolhida naquela festa. Sempre fora boa a encolher-se, aprendera cedo. Vinha de uma família de coisas no lugar certo e o seu era suposto ser modesto.”
Nem sempre antevemos o que nos muda a vida. Por isso, nem sempre os detalhes do momento ficam guardados. Daquela festa, ela pouco mais recorda do que o imenso jardim. E as palavras, claro. Essas cristalizaram. São hoje mais nítidas do que quando foram ditas. Naquele dia, havia muito ruído: de vozes, música e das coisas interiores que eram dela.
Puxa pela memória e lembra-se de estar num terraço. Quase todas as casas em Herat, a segunda maior cidade do Afeganistão, tinham um terraço no topo, onde poder ver as estrelas e onde, a ser mulher, poder estar ao ar livre sem burca. A casa que ela ocupava também tinha. Na noite anterior tinha lá estado, deitada no cimento, na noite fresca depois do sufoco, no ar seco de Agosto e deserto. Os colegas de trabalho tinham fumado e rido muito, aparvalhados de erva, e ela, sóbria e alarmada, atenta ao fumo, ao aroma que fugia, forte e livre, para lá do terraço e da casa, sem ninguém a impedi-lo, sem ninguém, a não ser ela, a importar-se de onde podia ir.
Recorda-se de estar encolhida naquela festa. Sempre fora boa a encolher-se, aprendera cedo. Vinha de uma família de coisas no lugar certo e o seu era suposto ser modesto. O avô batia na avó, o tio achava que ninguém queria filhas. Na sua família os homens falavam alto e tinham razão e as mulheres eram decentes e boas cozinheiras. Algo sobra sempre, algo se guarda debaixo da pele.
Havia um americano na festa, lembra-se. Um que ia muitas vezes a casa deles. Não recorda o rosto, mas lembra-se do modo de estar ligeiro, daquela forma de dizer certezas de quem cresceu a correr em câmara lenta numa praia da Califórnia, cabelo despenteado na brisa marinha, prancha de surf debaixo da axila. Era um cowboy, dono do mundo, dono do Afeganistão. Algo sobra sempre, algo se guarda debaixo da pele. Dizia-se director de uma ONG, mas toda a gente sabia que era da CIA.
Lembra-se de atravessar a conversa dele e ficar a observar muito tempo o guarda, um afegão, que, lá em baixo, baixava a cabeça e fingia não ver.
Não ver o álcool, que era proibido, a ser consumido ao ritmo de um pub inglês quando a sineta toca a avisar o fecho.
Não ver aquela casa enorme, com jardim do tamanho de uma praça, onde só viviam duas pessoas, numa cidade de esgotos abertos e casas degradadas.
Ou era ela que fingia não ver?
Acha que recorda o guarda a retribuir-lhe o olhar e ela a dizer-lhe, na linguagem equívoca das pupilas, que estava ali para ajudar. Ajudá-lo a ele, à mulher, às crianças que agora iam à escola, à família toda, à vizinhança… Se possível, ajudava o mundo inteiro. Embora não parecesse.
O americano não a largava, apesar de ela lhe atravessar as palavras. Tinha chegado há pouco, era novidade, e não eram assim tantas as mulheres entre os humanitários em Herat.
Não estavam os dois sozinhos e é possível que ela se tenha afastado não por ele, mas por se começar a discutir outra vez o como e onde seria a próxima emergência. Tão certo como estarem num terraço. Tinham bastado poucos dias ali para ela perceber que o desporto preferido dos especialistas humanitários era fazer apostas sobre isso. Percebera também que muitos se conheciam de outros lugares, de outras emergências que se apressavam a nomear, não fossem correr o risco de ser considerados inexperientes. Lembrar-se-á de todos em breve, porque nenhum acertará, mas imagina-os a esfregar as mãos de contentes: a próxima grande emergência não será uma guerra germinada no útero ensanguentado do continente africano, mas um brutal tsunami no Sudeste Asiático. Para lá iriam, formiguinhas espalhadas num quintal, juntas à primeira migalha.
Vê-se a ouvi-los, encolhida, sempre a pensar no que obviamente não interessa. No fumo, no guarda, nas vítimas.
Afastou-se por isso, pela conversa que a desencaixava, e foi ter com o anfitrião da festa, o lojista da Unicef que vivia naquele pequeno palácio. Sem saber, a caminho das palavras. Era um escocês simpático, mais velho. Talvez por isso se tenha dirigido a ele, pensa agora. À procura de maturidade com que equilibrar a noite. À procura de quem também pensasse no que não interessava.
Os detalhes escapam-se. Talvez ele tenha perguntado se estava a gostar da festa. Talvez lhe tenha erguido o copo e tenham feito um brinde, como se fossem compinchas. Certo é que ele já tinha bebido de mais. A língua enrolava-se nas palavras e ela lembra-se delas encarquilhadas e secas. Ao lado dele, talvez estivesse alguém a admirar o jardim para ele responder que aquela era uma das melhores casas de Herat. Havia uma nota de orgulho na resposta, sem espaço para vergonha, só para o regozijo da inveja alheia.
Desafiara-o. Também ela tinha bebido e estava farta de encolhimento. Perguntara-lhe “e não é de mais, só para duas pessoas, nesta cidade?” Cidade de terra, miséria e pó, de blocos de cimento a servirem de casas, limpa de Talibãs, mas povoada de burcas e senhores da guerra de metralhadoras às costas. “Deve custar uma fortuna.”
Ele rira-se, pupilas cheias, e dissera-as. As palavras. Sem culpas, sem peso, como se não revelassem monstruosidades.
“Andei no exército até descobrir os salários das Nações Unidas. Ou achas que estou aqui pelas criancinhas do Afeganistão?”
E continuara a falar de outra coisa. Do jardim, dos quartos, de outros lugares. Todos eles falavam de qualquer coisa. Enquanto o guarda baixava os olhos. E ela se calava. A verdade é que tudo se dissipa, menos o que é mais importante.
Regressou pouco tempo depois. Deitou fora anos de estudo, uma carreira na cooperação, a certeza de que se podia ajudar a humanidade. Mas tem pena de se lembrar desta festa. Gostava de a esquecer. Gostava de voltar a comprar postais de Natal na Unicef e ficar feliz, com a certeza ingénua de que aqueles poucos euros, a juntar a tantos outros, mudavam a vida de uma criança no Afeganistão.
Santa Engrácia
por Célia Correia Loureiro
“Sabe como são os homens, agarram-se à ideia de que basta uma taça de vinho e um cachimbo para retomarmos a amizade depois de uma facada daquelas.”
Irene foi convidada para cantar em Santa Engrácia, nas Festas da Cidade de Lisboa. Era um junho quente, avesso a grandes melancolias. Foi por essa altura que começou a visitar um psicanalista.
– Já ouviu falar de Sobral Cid?
– Não, de quem se trata?
– Um desses homens modernos que estudam Freud e a psicanálise.
– Viu-se estendida no divã, a falar da sua vida?
– Sim, e em troca de uma boa maquia – admitiu, enclavinhando as mãos no colo enquanto o motorista do dia do Luna-Parque nos conduzia por Lisboa. – Gostaria que visse a quantidade de senhoras da boa-sociedade que aguardavam naquela sala de espera. Todas elas a enlouquecer por causa dos pais superprotetores, dos maridos ciumentos ou dos filhos ingratos.
– Imagino muitos diagnósticos de histeria – trocei, porque é o costume quando uma mulher ameaça perder a compostura: diagnosticá-la com histeria.
– Isso, histeria. No meu caso, não houve diagnóstico desse tipo. Eu precisava de ajuda para esquecer o meu desgosto, aquele homem que me destruiu a paz e que manchou todas as minhas lembranças de juventude e aquela rapariga horrível.
– E era muito jovem.
– Tinha 23 anos e nenhuma perspetiva de casamento.
Em ‘35, Irene costumava ir muito ao Odeón, o que era considerado um progresso face às tascas por onde tinha começado a cantar, nas quais tratava todos os taberneiros por tu. O seu rosto esteve quase meio ano em cartaz, com dois guitarristas a pairar acima da sua testa ampla e olhos escuros. Ela tinha um recorte de jornal a comprová-lo, mas não se lembrava onde o tinha guardado. Todas as pessoas importantes da sua vida tinham sido varridas pela azáfama da sua rotina e, por uma vez, a circunstância de acordar tarde servia de pretexto para que não pudesse reunir-se sequer com Rosa.
– Não queria ver a Rosa, porque ela havia de trazer-me notícias do Henrique e da Lena, ou do casamento dos dois, e eu não queria saber de nada.
– Mas nunca enfrentou a Lena a respeito dessa traição? – Parecia-me improvável que, numa cidade com a dimensão de Lisboa, os três nunca se tivessem cruzado depois do anúncio do cataclismo.
– Sim, no dia do casamento dela.
– Compareceu?
– Claro.
– Mas foi convidada?
– Fui, pelo Henrique. Sabe como são os homens, agarram-se à ideia de que basta uma taça de vinho e um cachimbo para retomarmos a amizade depois de uma facada daquelas. Esperava que eu recusasse o convite, mas que me sentisse bem-vinda, estimada, por aquele núcleo de pessoas. Fui, mas com outras intenções.
– Os seus amigos sentiam-se confortáveis, nesse meio?
– A Rosa não, mas também não foi convidada. A Luísa também não, estava muito hirta e não parou de olhar para mim como se estivesse a antecipar Hiroshima durante toda a cerimónia, dir-se-ia que esperava que eu explodisse a qualquer instante.
– Lamento muito – sussurrei, mas ela não queria falar do casamento nesse momento e sacudiu o assunto com um gesto de unhas pintadas e anéis reluzentes.
Uma noite em que chovia torrencialmente, depois de um concerto, apertou as lapelas do casaco e caminhou até à Avenida, onde teria mais probabilidade de encontrar um táxi àquela hora. Nunca mais sentiu a chuva do mesmo modo, desde que Henrique tinha menosprezado a sua condição de mulher, a sua dignidade, e a remetera para uma boleia de caridade com o Vaz. Sair do trabalho à chuva era regressar a esse abismo de desconsideração e abandono. Ao chegar à Avenida, aproximou-se da berma da estrada e esperou. Sentia-se demasiado cansada para focar a visão nas chapas cintilantes à distância, que anunciavam os parcos táxis que por ali circulavam àquela hora, alguns deles já ocupados. Se não fossem os tacões e o temporal, teria caminhado por meia hora até casa. Usava um casaco de pelo de raposa que a impedia de sentir frio e que a protegia de uma molha, e trazia um diadema dourado na cabeça. Fazia questão de se apresentar deslumbrante, de modo a ostentar a confiança necessária para erguer o queixo ao cantar. Tudo isso lhe pesava na hora de abandonar um concerto, porque choviam convites para a acompanhar a casa, ou para prosseguir para uma boîte, beber um porto, rir mais um pouco. Ela só queria ficar a sós, a ouvir a chuva nas portadas da janela e a beber um chá de tília. Sentia-se sozinha e muito cansada, pelo que se arrancou àquele torpor com esforço, estendendo a mão para fazer sinal a um motorista que vinha a descer a rua. Foi então que ouviu a voz dele atrás de si, elevando-se do silêncio que tinha vindo ocupar a tagarelice dos bon-vivants:
– Sempre conseguiu que a sua mãe a deixasse cantar.
Foi como retomar, com naturalidade, a conversa de há alguns anos. Voltou-se e um sorriso nasceu-lhe nos lábios, porque daquele rosto que a olhava com orgulho não vinha nada de nocivo, nada que pudesse feri-la.
Festas Feitas são Festas Desfeitas
por Cláudia Araújo Teixeira
“Um dia, num dia de festa, damos por nós crescidos.”
Não sei porque gosto de festas, será pelo mesmo motivo que gostamos daquilo que não nos faz bem, como os fritos. Sabem tão bem, ainda que ninguém os recomende. Desde pequena que as festas, a sua intenção e predicado, sempre foram o antónimo daquilo que é minha vida. Em pequena, as festas eram sempre motivo de tensão entre os meus pais e o excesso daqueles dias, comida, presentes e até a obrigação da alegria, só faziam sobressair aquilo que nos faltava no dia a dia. Inconscientes e encandeados pelas luzes, nesses dias, nunca nos ressentimos, só sentíamos, concentrados que estávamos em absorver aquilo tudo como se de um osso de frango assado se tratasse, até ao tutano. Como sempre fui sôfrega, às vezes, até fazia batota. Fingia acreditar no velho gordo, de fato vermelho e barbas brancas – pff, como se alguém com aquele aspeto conseguisse fazer aqueles quilómetros todos numa noite e ainda caber numa chaminé, não numa numa qualquer, era na nossa, que nem a exaustão do refogado fazia bem. Se nem o ar passa, quanto mais o gordo, pensava – para enganar os meus pais, que se descuidavam com os presentes. Presentes esses de que encontrava sempre o paradeiro, tal como as amêndoas de chocolate da Páscoa escondidas no frasco em cima do frigorífico, eram o gato escondido com o rabo de fora. Sorrateira e solenemente, espreitava por entre os embrulhos mal-amanhados como o Ali Babá à porta da gruta do tesouro. No dia, já sabia que ia receber o fato de treino azul, o globo terrestre iluminado, o estojo de metal de dois andares, não se iludam não foram todos no mesmo ano, mas o resultado da soma de vários anos. Sabia-os de cor pois nessas noites acabávamos sempre sós a desabafar e a fazer planos, eu e os presentes, pois os meus pais já há muito tinham discutido e estragado as festas, como leite derramado que ficava a escorrer nos armários da cozinha. Depois, veio a adolescência, as dores são fortes, mas ligeiras, como os arranhões das primeiras quedas de bicicleta, bastava um sopro e um beijo para passarem. Agora as festas, sobretudo, as populares, em virtude de testemunhos de santos passados, eram onde residia a promessa de festas felizes. E eram a primeira saída sem os pais, a primeira bebedeira, o primeiro beijo, a primeira dormida na praia, enroscada a alguém de quem hoje nem lembramos a cor, o frio que entranha ao nascer do dia, o sabor do café e do pão da primeira fornada, quente e estaladiço, em que a manteiga nem precisa de ser espalhada, basta deixar a noz derreter ao som do calor, ela seguirá o seu caminho. Um dia, num dia de festa, damos por nós crescidos. Esse dia em que já somos nós os pais, anfitriões da nossa festa e das festas dos nossos, evocamos a memória, como O Fantasma do Natal Passado, queremos fazer diferente, melhor. Rever os erros e corrigir como se de um texto se tratasse. Queremos ter nota máxima. Cozinhamos, saltamos, dançamos, comemos, rimos e fingimos. Sentimos falta daqueles que já não se juntam à festa, até daqueles que as estragavam. Agarramo-nos às palavras da Fernanda de Castro,
“Quando a Vida te Doer
Canta, canta, canta
Quem Precisa de Saber
Que Tens um Nó na Garganta.”
Estão escritas na bandeirinha que adorna o manjerico que enfeita a mesa. Pousamos a mão, cheiramos e fingimos. Festas Felizes!
Casa da Dona Josefina
por Maria Francisca Gama
“A dona Josefina não dança, mas vive para organizar estas festas.”
Em casa da dona Josefina não se faz barulho, nem se mexe em nada. Por mais que as coisas brilhem e pareçam chamar-nos, pedindo-nos que lhes toquemos, não se cede a essa tentação. Tudo está no lugar correto, milimetricamente disposto e posicionado, e qualquer olhar penetrante ou incomodativo – para as próprias coisas ou somente para ela – pode perturbar a paz que lá se vive.
Em casa da dona Josefina não se come de boca aberta, nem se espirra com vontade. Os risos devem ser contidos e, se possível, inexpressivos; os passos assemelhar-se-ão aos de formigas trabalhadoras e mudas, e as perguntas colocadas em silêncio, se e apenas quando for imperativo vê-las esclarecidas. Caso se trate de meras curiosidades ou de pedidos supérfluos por atenção, deverão ser guardados juntamente com os elogios baratos à mobília – esta sim, cara – ou à forma como tão bem recebe quem a visita.
Em casa da dona Josefina não se entra calçado, nem se pergunta, de antevéspera, se se pode levar alguma coisa: naturalmente que ela providenciará, como sempre faz, tudo o que for necessário para o evento. Vai-se com cuidado, de emoções contidas, escondendo, por vergonha ou receio de frustração, as altas expetativas que carregámos até ali, e espera-se sempre pelo seu aval para iniciar uma conversa. Não se escolhe a música que se vai ouvir, nem se tecem considerações caso já se escute qualquer melodia à entrada.
Os convidados, selecionados sob critérios apertados e exigentes, devem escolher o seu lugar na sala cientes de uma das mais importantes regras: à direita da dona Josefina, os homens; à esquerda, as suas semelhantes. As poltronas de veludo são para os habituais – isto é, aqueles que já lá estiveram uma ou outra vez –, e as cadeiras de assento côncavo e encosto curvo são para os que não estão habituados àquelas andanças.
Já sentados e em silêncio, a dona Josefina gosta de iniciar a festa com uma dinâmica. Pede a todos os que estão à sua direita que se levantem e rodem sobre si próprios, e às que se encontram do lado oposto que os observem. Os que já estão a par deste ritual, por experiência ou boato, levantam-se prontamente e encaram aquele momento com a leveza de um bailarino russo experiente; os outros, atarantados, tímidos ou receosos da perda da masculinidade, preferem tratar do assunto com um sorriso breve e jocoso, como quem diz «se tem de ser, tomem lá disto».
A dona Josefina, de seguida, pergunta às mulheres quais os homens que, no momento anterior, lhes pareceram par digno, e aqueles que não foram mencionados, ou apontados pelos indicadores finos, sombreados de verniz vermelho ou manicure francesa, são convidados a sair pela porta pela qual se anunciaram minutos antes.
E aí começa a festa. Cada mulher escolhe um homem, que a recebe de mão esticada e olhar triunfante, e, no pequeno espaço disponível, inicia-se o bailado. Não é permitido falar, até porque o volume da música não será aumentado, e muito menos beber álcool ou fumar charutos, desses que todos detestam, mas que muitos creem que lhes dá qualquer coisa que não têm.
Não há horas para terminar, mas a dona Josefina retira-se quando, ao invés de olhares curiosos e pouco confortáveis, sente que se trocam relances cúmplices e respeitadores. O objetivo daquelas festas não é encontrar-se o par perfeito, nem se sair dali ansioso pelo próximo encontro: trata-se tão-só e apenas de um momento de dança, em que todos devem dar o seu melhor, e focar-se no importante. Esquerda, direita, esquerda, direita. Queixos erguidos, mãos firmes e determinadas, no ritmo da batida e no ritmo do outro.
A dona Josefina não dança, mas vive para organizar estas festas. Não é de muitas palavras, contudo suspira enquanto sobe as escadas do seu prédio até que todos saibam que está de regresso: dir-se-á que é para que ninguém continue a dizer impropérios sobre si, «a que organiza festas de bailado em casa». Os vizinhos comentam que as organiza porque era assim que recebia o seu falecido marido. Esperava por ele na poltrona, dava-lhe a cadeira desconfortável de assento côncavo e encosto curvo e apenas se levantava para o cumprimentar e amar quando, após dar uma volta em silêncio sobre si próprio, lhe mostrava estar bem-disposto e pronto para dançar. Nunca gostou de conversar e sempre sonhou ser bailarina.
O Fim da Festa
por Rita da Nova
“Festa e fim são duas palavras que não combinam; porque, mesmo quando a festa acaba, o que fica são as memórias das horas bem passadas.”
O sinal sonoro que implora aos passageiros que apertem o cinto de segurança acorda-me ainda antes dos abanões. Naqueles segundos entre o sono e a realidade, tenho uma epifania. Compreendo que era assim mesmo que gostava que o nosso fim tivesse sido — como atravessar uma nuvem a meio de uma viagem de avião.
Primeiro vem a turbulência: agita-nos no lugar e faz-nos agarrar os braços da cadeira com mais força, como se fossem os braços de alguém com a capacidade de nos salvar. Depois a agitação passa e não há mais nada. Só branco. Um branco que cega, um branco tão puro, que traz em si toda a luz do universo. E o silêncio, um silêncio quase óbvio, a condizer com a ausência de cor.
Se o nosso destino tivesse sido assim, eu tenho a certeza de que estaria em paz. Mas como posso estar tranquila quando o nosso fim veio colado à festa? Festa e fim são duas palavras que não combinam; porque, mesmo quando a festa acaba, o que fica são as memórias das horas bem passadas. A recordação das piadas mil vezes repetidas, a contagem dos copos bebidos, a vontade de fazer tudo de novo na noite seguinte.
Não tinhas o direito de me estragar a festa. O caminho entre a Baixa e o Terreiro do Paço é para ser feito com leveza nos pés, é para deixar que o cheiro do Tejo e das sardinhas assadas se misture e se cole à pele e aos cabelos. É para ser feito com música nos ouvidos, não com as tuas desculpas esfarrapadas a sobrepor-se ao Quim e à Rosinha.
Foi como se nos tivéssemos perdido um do outro enquanto dançávamos no meio do arraial. Sim, disse “foi como se” porque estou a fazer uma comparação para que percebas como o senti, já que tu não danças e, além disso, tens a capacidade de me contaminar com a tua vergonha. Há sempre tantos velhotes lampeiros a querer fazer-me rodopiar no meio da pista, mas eu acabo a fazer a mesma figura de parva; digo que não, peço desculpa, mas não.
Só para que fique claro: quando eu digo que o nosso fim foi como uma dança interrompida no auge da festa, o que eu quero dizer é que não esperava que escolhesses aquele momento e aquele local. Agora que estavas mais solto, que já tinhas deixado que a música te aligeirasse os músculos. Agora que já haviamos chegado ao nosso destino, a um cenário cheio de cor, de risos, de manjericos com quadras auspiciosas.
Pegaste na coluna de som e puxaste o fio da tomada com demasiada força — e, se ainda não percebeste, isto é uma metáfora para a maneira como me arrancaste o coração do peito. Estragaste-me a festa para sempre: eu estava pronta para ficar até serem horas de ver o nascer do sol junto ao rio, mas agora só consigo fazê-lo cá de cima, da janela de um avião.