ORGANIZAÇÃO DA NEWSLETTER: MARIA FRANCISCA GAMA E SARA RODI | REVISÃO: LÉNIA RUFINO | TEXTOS: CARLA M. SOARES, CRISTINA DRIOS, MAFALDA SANTOS, RITA CRUZ E RITA DA NOVA
Nesta Newsletter Literária conhecerão Cidades pelo olhar das escritoras que nela participaram. Vão poder passear por algumas desertas, outras densamente povoadas, as que convidam a ficar e as que nos fazem sentir sozinhos/as ou claustrofóbicos/as. As seguras (às vezes só para alguns) e as que nos que nos amedrontam em cada esquina. As que se ouvem à distância e as que abafam os nossos gritos. Cidades desenhadas em prosa, outras esculpidas a poesia - porque o papel da Literatura é também levar-nos por passeios distintos.
Fiquem por aqui e leiam-nos. Depois, se assim o entenderem, digam-nos como é a vossa cidade, ou como se sentiram a percorrer as nossas.
Boas leituras,
Clube das Mulheres Escritoras.
Cidade Mulher
por Carla M. Soares
“Viemos saber quem era esta mulher de alma de velha em corpo de menina.”
Atracamos hoje descalços quase nus
é dia de calor abrasador no cais
um rio cintila como jóia entre seios
de uma mulher bela no seu cabelo prata
estende braços lisos sobre as esquinas
coxas pétreas antigas muito quietas
de veios finos incertos como ruas
para o centro, o centro branco ali mesmo
uma praça aberta ao mundo inteiro
útero de maravilhas de pedra e sol
e viagens de navios de pau e coragem
mulher elegante na largura do caminho
mais adiante será curva e escarpa
beco e tasca e sacada em sacada
escura e torcida velha vizinha azeda
Viemos saber quem era esta mulher
de alma de velha em corpo de menina
voz rouca de fado e brado de varina
para aprender as rugas da sua pedra
na nossa pele de por dentro viajantes
Carla M. Soares
Cidades Desenhadas
por Cristina Drios
“O escritor também roçava as nuvens quando se punha em bicos de pés.”
Conheci um escritor que desenhava CIDADES.
Desenhava-as em folhas brancas, grandes como a própria ideia de cidade.
Nessas cidades havia ruas, ruelas, rotundas, praças e becos.
Fontanários, jardins, coretos.
Edifícios térreos, baixos e largos.
As cidades do escritor eram azuis, violeta, laranja ou cor-de-rosa.
Eram cidades só feitas de traços, sem cimento, betão ou argamassa.
Não era possível destruí-las com mísseis ou rockets porque não é possível destruir a imaginação.
Por vezes, arranha-céus roçavam as nuvens.
O escritor também roçava as nuvens quando se punha em bicos de pés.
Não sei se nessas cidades havia pessoas, mas já não fui a tempo de lho perguntar:
O escritor que desenhava cidades mudou-se de armas e bagagens.
De certeza, vive agora numa das suas CIDADES DESENHADAS com uma gata preta de olhos tristes e doces.
In memoriam LC
Cristina Drios
Voar para Fora da Culpa
por Mafalda Santos
“E, de repente, aquele som seco. Aquele baque breve. Depois o silêncio total, o choque. O grito de horror preso na minha garganta.”
Desde o primeiro instante a cidade mostrou-se indiferente ao meu sofrimento. Surda às minhas súplicas por silêncio, por um mísero intervalo na sua cadência maquinal.
Fora dos muros deste quintal os carros continuam a acelerar e a travar, os comboios apitam à distância, trazido pelo vento o som estridente de um rádio reverbera nos edifícios, aviões cruzam o céu demasiado perto dos telhados, e as multidões de gente seguem gritando, rindo alto, discutindo por ninharias, falando ao telefone.
Para lá dos muros deste quintal a minha história é apenas mais uma e a cidade não perde um segundo no pudor de me lamentar.
Penso nisto ao abrir os olhos e apercebo-me de que não sei durante quanto tempo estive inconsciente. Tive de inspirar várias vezes para ter a certeza de que estava de facto deitada. E então senti um vazio imenso. Um vazio vertiginoso que, tal como uma corrente de ar, me percorreu por dentro.
Senti os meus membros inertes, gelados e pensei: Estou morta. Meus Deus, estou morta.
Quis gritar, mas logo abandonei essa ideia. Era óbvio que este amontoado de carne e ossos já não possuía o furor suficiente para fazer vibrar as minhas cordas vocais e, mesmo que possuísse, eu não saberia o que gritar.
Por cima de mim, os ramos da macieira dobravam-se quase até ao chão, com o peso de centenas de maçãs. Não deixava de ser irónico morrer aqui.
Como é que aquilo pudera acontecer? A culpa perseguia-me. Tinha ocupado todas as dimensões da minha existência. A culpa tornava rarefeita a atmosfera e naquele quintal paralisara todo e qualquer movimento da natureza.
Foi então que senti algo líquido e quente molhar-me a cara. Fiz rodar os olhos dentro das órbitas e consegui ver que se tratava do meu próprio sangue que, jorrando dos meus pulsos abertos, me rodeava por todos os lados, largo e escuro, transformando o meu corpo numa ilha sinistra.
Será que ainda iria demorar muito tempo?
«Golo!» gritou, não muito longe, um coro de vozes eufóricas, abafado pelo barulho da obra no prédio ao lado.
Uma vertigem atravessou-me como um espectro. A terrível noção de que era tarde de mais para desistir, se quisesse.
Como uma lâmina a percorrer-me o pensamento, o medo invadiu-me e senti vergonha. Não tinha o direito de sentir medo. A culpa doía-me por dentro do medo.
Conseguia ainda ouvir as gargalhadas da minha menina, aqui mesmo brincando, à sombra desta macieira. Como é que aquilo pudera acontecer? Desviara dela a minha atenção por não mais de um minuto, mas fora o bastante para sobrevir a tragédia.
Era uma criança naturalmente alegre, o seu riso constante era como o chilrear do mais doce dos pássaros.
Estávamos na festa do seu aniversário. Sete anos. Eu tinha enfeitado o quintal com grinaldas de papel de todas as cores. As crianças corriam perseguindo os cães que ladravam de excitação, enchendo o espaço de vida e alvoroço.
E, de repente, aquele som seco. Aquele baque breve. Depois o silêncio total, o choque. O grito de horror preso na minha garganta. A minha menina estava caída por baixo da macieira. O crânio aberto e os cabelos louros ensopados em sangue.
Sem que ninguém desse por isso, subira à enorme árvore, a única deste quintal, e caíra de cabeça, morrendo instantaneamente.
A culpa doía-me por dentro do sofrimento. Costumava chamar-lhe «meu passarinho», elogiava a sua linda plumagem e, quando lhe penteava os cabelos, pedia-lhe: «Voa, meu passarinho de cristal! Abre as tuas asinhas cor-de-rosa e voa aqui à minha volta.»
Podemos alimentar uma lagarta, podemos sussurrar doces promessas ao casulo, mas o que dele eclode foge totalmente ao que podemos controlar.
Uma mota passou veloz, engasgada em estouros roucos.
Agora sentia-me como se fosse só uma cabeça. O meu corpo desaparecera. Flutuava no nada, sem direcção. Era uma mulher incorpórea, um ser abstracto passando desta esfera para outra.
Senti novamente medo. Mas não o medo da morte, como antes, mas um medo do desconhecido, da dúvida. O que existirá do outro lado? Se a minha menina não estiver lá, tudo isto perderá o sentido, todo este sangue terá sido em vão.
Olhei as maçãs por cima de mim. Daria tudo para comer agora uma maçã daquelas.
Já não devia faltar muito tempo. Só tinha de me acalmar e deixar o tempo fazer o resto.
Foi então que ouvi chegar os cães. Não os via desde aquele dia. Nessa noite tinha-os ouvido a uivar ao longe, na cidade, mas nem para comer tinham voltado a aparecer. Talvez conseguissem ver a minha culpa por dentro da pele. Mas agora ali estavam eles novamente. O mais pequeno aproximou-se e cheirou-me o cabelo e a boca; o mais velho começou a lamber o sangue no chão e o terceiro fez sacudir o meu corpo inanimado com tal pujança que, por momentos, tive a ilusão de que poderia levantar-me se quisesse.
Mas essa ilusão não tardou a desfazer-se. O cão deitou-se ao lado da minha cabeça e começou a devorar a mão que me arrancara. Os outros não demoram a seguir-lhe o exemplo.
Nada disto me causava dor. Estava agradecida por isso. Só queria que tudo chegasse ao fim.
Lá fora na cidade, uma corrente elétrica perpassou o ar e por instantes todos os sons e actividades cessaram.
Fitei a copa da árvore. Sobre um dos ramos, num enorme ninho, a minha menina olhava para mim. O meu passarinho de vidro. E eu pude finalmente abrir as minhas asas e voar para fora da culpa.
Mafalda Santos
Se Soubéssemos
por Rita Cruz
“Há um momento para todos nós, mais tarde ou mais cedo, em que nada dói, nada enraivece, nada pesa. Para ela, foi aos vinte e três anos.”
A tarde é um abafo. Prenhe de trovoada, encosta-se húmida e viscosa à pele e à roupa dos que aguardam para lá dos portões que se abrem num abraço de ferro. O asfalto está em brasa, do sol que apenas acabou de se esconder, e o céu já ruge ao longe. Mas ninguém arreda pé.
Observo-os. O pingo de suor a cair do queixo, a mancha aquosa das axilas. Ainda hesito. Talvez possa retirar o cenário da tarde, substituir por uma manhã ainda mansa, mas decido-me pela inclemência. Serve-me o dia a ebulir tempestade para insinuar que a vergonha pode ser sentimento forte, mas a curiosidade é-o mais. Deixo-os ficar como estão, marinados em transpiração, pescoços esticados, sedentos de um vislumbre, abutres de imagens.
Ouço. Dizem:
Queremos ver-lhe a cor da pele, diz que azulada; apreciar-lhe as pernas finas, diz que é só osso. O rosto também gostávamos, mas diz que está escondido. Não nos lembramos dele, mas a rapariga viveu ali pouco tempo, como lembrar. Não, diz que três anos. Ah, não sabia. Achei que um par de meses. Não se via.
Nunca a tinha visto. Dizem.
E eis que a porta abre, da casa que julgavam há um ano vazia. E por ela sai a rapariga que se chama Joanna. Mas pese a tarde e o sufoco da espera, nada mais se vislumbra do que uns pezinhos pequenos e sujos, a espreitar por debaixo do lençol, quando a rapariga, que vai sentada, atravessa finalmente os portões.
Uma desfeita que a multidão de imediato labuta em desfazer, porque com a atenção devida vê-se sempre mais qualquer coisa. Os lençóis nunca cobrem tudo, como a morte falha a cobrir a vida. Atentos, notam que a rapariga espreita por debaixo do lençol e percebem uma aragem, um sopro de uma verdade, e de súbito percebem que talvez não queiram ver nem ouvir. O silêncio não se instala porque o céu desaba num ronco irado. O grupo desmobiliza num alívio de pressa justificada. Viram olhos e costas e pegam nos sacos de supermercado, recolhem a roupa estendida, abrem portões e portas e desaparecem dentro das casas como caranguejos em buracos de areia. Se soubéssemos ecoam ao fechar.
Se soubéssemos.
A rapariga de nome Joanna, que vai sentada e que não é de propósito que apenas lhes mostra os pés, não se interessa da multidão, do agrupamento e da desmobilização. Vai surda e cega dos segundos dos outros, porque aqueles portões abertos são uma melodia que só ela ouve, uma paisagem que só ela entende. Até este dia, nunca eles foram mais do que o limite da sua cidade. Nunca eles se abriram neste abraço.
Vais viver num prédio de cinquenta andares, sussurrara-lhe a matrona, com lábios de sangue e dente de ouro. Mas a cidade afinal tinha sido aquela casa de pátio de cimento e portões de ferro sempre fechados. Os arranha-céus, só lá longe, ao fundo, tão inalcançáveis ali como o tinham sido na sua aldeia, na sua casa de bosta e zinco, no país ao qual agora regressa. Mais reais, isso sim, agora sabia que existiam. Quando ouvira a matrona não tinha tido certezas, cinquenta andares, desconfiara impossibilidade, mas mesmo assim ouvira-a. Fora a única na família que o fizera. Era a mais nova, a mais preguiçosa, a que tinha a cabeça mais no ar. A mãe dizia-lhe que ela tresandava a problemas, porque na aldeia os pés devem beijar a terra e ela namorava as nuvens.
Tinha razão. Fora ela a única a ouvir a matrona e a acreditar, atenta ao ouro do dente e desatenta do escuro da boca que as articulava.
Não ouve o sussurro uníssono da multidão, Joanna. Não lhe interessam as minúcias da vida e por isso não é a ela, mas a mim, que me irrita o absurdo, e me ponho a recordar os impropérios que a vizinha do lado esquerdo gritou, no dia em que Joanna desfaleceu e não limpou logo a merda que o cão dos patrões fez perto do muro entre as casas. Ou os que lhe gritou a vizinha do lado direito, num dia em que a fome já era tanta que os olhos não viam, os braços desacertavam e acabou a molhar-lhe a roupa estendida com a mangueira com que limpava o pátio.
Nunca a vi. Se soubéssemos.
Saber. Tal como para lá dos pés que espreitam há um corpo inteiro, para lá do verbo saber também há um outro, muito maior, que se esconde no sussurro. Pois como é possível não saber quando um corpo definha tanto de fome que a pele escorre dos ossos. Como é possível não saber quando os sons fogem sozinhos da goela, mesmo a saber-se o castigo de cada grito, e vão bater às portas e às paredes das casas coladas todas umas às outras.
A rapariga que sai à rua, sentada, rígida, pernas finas debaixo do lençol, não recorda nada disto nem pensa nesse verbo maior. Há um momento para todos nós, mais tarde ou mais cedo, em que nada dói, nada enraivece, nada pesa. Para ela, foi aos vinte e três anos. Os reais, não aqueles que disse que tinha quando aceitou fugir da aldeia, sendo que no calendário da vida apenas contava dezassete.
Sou eu outra vez, que não largo os momentos e os verbos e neles martelo verdade e mentira. Talvez porque Joanna é quase o mesmo nome que eu trago de baptismo, a seguir a Rita. Talvez porque também eu sempre quis sair do meu lugar, namorar as nuvens, e no meus idos dezassete anos comecei a fazê-lo. Mas já parti de uma cidade, pese pequena e escondida, que para Joanna podia ser um destino.
A carrinha parte. Vai atravessar a cidade, cujas luzes em breve se vão acender, para a vestirem de festa. Ano Novo Chinês, vermelho e ouro nas ruas e nas casas. Joanna quieta debaixo do lençol, cabeça entre as pernas, nada pode ver. Mas mesmo que visse… aprendeu há três anos que torres de vidro vestidas a lantejoulas e ruas decoradas como dentes de ouro numa boca escura são pouco mais do que um inferno vestido de céu. E que céu e inferno são, afinal, coisas da vida e não da morte.
Irão recebê-la com sustos na aldeia para onde vai, exausta, finalmente presa ao chão, porque assim vai, sentada e rígida. Ou talvez antes de chegar Joanna acorde. Quem sabe antes de a pousarem na terra quente e castanha onde nasceu como gente, ela erga o pescoço, que assim está há um ano no congelador, a dobrar-lhe o corpo como um frango, para que nele coubesse. Quem sabe, talvez estique o corpo e caiba num caixão, para que as jovens da terra não pensem que é esse o único lugar que lhes resta na cadeia alimentar da civilização.
Eu fico sozinha na rua de asfalto, com a chuva a bater-me no corpo com fúria ancestral. Há-de cair assim durante algum tempo, até as nuvens perderem peso. Depois, antes do anoitecer, ainda há-de o sol debruçar-se sobre este planeta que é dele e despedir-se para voltar depois, e depois e depois, até um dia deixar de o fazer, e nós sermos apenas o que fomos, a breve passagem de um milagre.
Fico sozinha, e penso no verbo atrás do verbo, na verdade atrás do sussurro que eu própria inventei.
Se soubéssemos.
Rita Cruz
A cidade contra mim
por Rita da Nova
“Se a cidade se lhe tinha afigurado assustadora com a luz do dia, que trevas o esperariam à noite?”
Esta história podia começar assim:
Um dia de manhã, ao acordar dos seus sonhos inquietos, Gregório Samuel deu por si em cima da cama, transformado; mas não num inseto monstruoso, como n’A Metamorfose — livro que, por acaso, tinha lugar cativo na mesa de cabeceira há anos e vivia atravessado por um talão de compras deslavado, ali entre os dois primeiros capítulos. Gregório não tinha acordado um inseto monstruoso, então, mas estava claramente transformado, estranho, diferente.
Qualquer coisa não estava bem, embora fisicamente se sentisse igual; a culpa era dos estímulos exteriores, que lhe chegavam com nuances diferentes. Os sons vindos da rua pareciam mais altos e assustadores, as sombras projetadas na parede inquietavam-no. Sentia-se observado e, mesmo estando dentro de casa, como se fosse o alvo de uma ameaça escondida.
Usou a rotina para afastar a estranheza que se apoderara dele: saiu da cama, calçou os chinelos, puxou os lençóis para cima e foi até à casa de banho. Aí, demorou-se a observar o corpo nu, dando especial atenção às partes íntimas, não fosse aquilo tudo sintomas de uma doença do foro sexual; ele era cuidadoso com essas coisas, mas nunca se sabe. Tudo isto para concluir que permanecia igual ao dia anterior e a todos os dias antes desse. Tomou um duche, vestiu-se, tomou o pequeno-almoço enquanto ouvia as notícias na rádio. Lá fora, pelos vistos, a vida decorria no ritmo que lhe era habitual: acelerava de manhã, iria estagnar com a preguiça do pós-almoço, voltaria a ganhar velocidade até à hora de regressar a casa.
Gregório preparava-se para sair quando a inquietação o atingiu de novo, vinda da imagem que o espelho do hall lhe devolvia. Duvidou da roupa que tinha escolhido e um pensamento inédito surgiu-lhe num canto do cérebro: seria possível que a camisa ou os calções passassem uma mensagem errada às pessoas que se cruzassem com ele? Poderiam aquelas peças de roupa dar margem a que se metessem na sua vida, a que lhe fizessem perguntas inconvenientes? Trocou a manga curta pela comprida e, embora não soubesse que temperatura fazia lá fora, achou por bem tapar as pernas. Aquela escolha de indumentária não tinha nada que ver com ele, mas sentia-se melhor assim. Iria mais protegido.
Os estímulos que o tinham confundido horas antes, ainda na cama, eram uma brincadeira de crianças quando comparados com o que sofreu mal pôs um pé fora de casa. Era como se a cidade se tivesse virado contra ele, como se o ar tivesse hostilidade na sua composição e as pessoas se tivessem também transformado durante a noite — tinham todas um aspeto mais duvidoso. Noutro dia qualquer, Gregório teria feito o caminho até ao trabalho de auscultadores nos ouvidos, a música altíssima, sem realmente se preocupar com o que o rodeava. Num dia normal, nada nem ninguém poderia fazer-lhe mal.
Naquele dia, porém, era evidente para toda a gente que Gregório não era ele. Cruzou-se com um grupo de homens à porta do café do bairro, todos de chávena numa mão e cigarro na outra. Ao verem-no tão tenso, e cheios de boas intenções, recomendaram-lhe que sorrisse. Estava habituado a encontrá-los todas as manhãs e a cumprimentá-los com boa disposição. Mas, ao contrário do que seria de esperar, aquela interação não ajudou em nada, apenas cimentou a desconfiança.
Gregório só foi capaz de voltar a si quando entrou no escritório e deixou a rua atrás da porta. A companhia de Abílio e Faustino, dois colegas que se tinham tornado amigos, mais por força da convivência diária do que dos interesses comuns, deixava-o mais tranquilo, dava-lhe mais segurança. Nunca tinha notado que aqueles dois tinham um efeito calmante nele — havia uma primeira vez para tudo e aquele dia, pelos vistos, amanhecera cheio de novas experiências.
Manteve-se bem durante o resto da jornada de trabalho: almoçou na cantina com os colegas, entreteve-se a cumprir as tarefas delegadas pelo chefe, fez a habitual pausa para café. Aos poucos, a sensação de estranheza e o receio de andar na rua foram-se dissipando. De tal maneira que entrou num estado de concentração incomum e, quando deu por si, o seu rosto era o único iluminado pela luz do computador. O estômago de Gregório emaranhou-se todo perante a ideia de ter de sair sozinho dali. Ainda por cima já escurecera, merda do inverno. Se a cidade se lhe tinha afigurado assustadora com a luz do dia, que trevas o esperariam à noite?
O caminho fazia-se em quinze minutos a pé e Gregório pensou que, se acelerasse a marcha, talvez conseguisse roubar alguns minutos ao percurso. O objetivo era claro: chegar a casa o mais depressa possível, sem paragens desnecessárias, sem estar mais tempo na rua do que era realmente necessário. Encheu os pulmões de coragem, decidido a enfrentar a cidade.
Os primeiros metros fizeram-se bem, mas tudo mudou quando sentiu uma presença atrás de si. A sombra daquela figura humana desenhava-se no chão com a ajuda da luz fraca vinda dos candeeiros e dava-lhe a sensação de ter um gigante no seu encalço. O barulho dos passos — os dele e os daquele monstro — confundiam-se com o do bater do seu próprio coração. Não sabia o que fazer: se abrandasse para que o ultrapassassem, podia ser apanhado mais facilmente; se estugasse o passo, podia estar a enviar um convite à perseguição.
Gregório nunca estivera tão alerta como naquele momento: o corpo enrijecera, os ouvidos pareciam detetar frequências inaudíveis a humanos, os olhos usavam e abusavam da visão periférica. Enquanto sentisse uma presença atrás de si, pior!, enquanto não chegasse a casa e se trancasse a sete chaves, não conseguiria relaxar.
Era bom ter algum tipo de defesa consigo, mas o canivete suíço que o pai lhe oferecera há largos anos estava descartado numa gaveta. Foi então que se lembrou das chaves de casa, o único objeto pontiagudo que andava consigo de um lado para o outro. Levou a mão ao bolso das calças e sentiu o toque metalizado da sua nova arma de proteção. Enfiou as diferentes chaves entre os dedos, com os dentes para cima: a do correio entre o mindinho e o anelar, a da porta do prédio entre o anelar e o médio, a do apartamento entre o médio e o indicador. Se o atacassem, seria capaz de retaliar.
Um pouco mais confiante, Gregório conseguiu chegar a casa são e salvo; exausto, foi direto para a cama. No dia seguinte, graças a Deus, tudo estava como dantes e podia andar tranquilo — era como se a cidade tivesse voltado a ser feita para ele.
Esta história podia chamar-se assim:
Instinto de Sobrevivência.
Mas não se chama porque Gregório só o ativou uma vez na vida: naquele dia em que acordou transformado, não num inseto monstruoso, mas naquilo que é viver como uma mulher.
Mais uma edição maravilhosa! Obrigada por partilharem a vossa arte