ORGANIZAÇÃO: FILIPA FONSECA SILVA | REVISÃO: JOANA KABUKI | TEXTOS: MARIA BRAVO, MARIA FRANCISCA GAMA E RITA CRUZ | ILUSTRAÇÃO: CÉLIA CORREIA LOUREIRO
Nem todos os caminhos são viagens, mas os textos que vos trazemos este mês, estamos certas, levar-vos-ão a embarcar em diferentes emoções. Num texto, há a beleza de um instante que nos obriga a parar; num outro, a angústia de um caminho que se afigura intransponível; e para fechar, as certezas escritas sobre mágoas e segredos.
Esperamos que se deixem levar pela força e singularidade destes textos, assim que eles se cruzarem no vosso caminho. Boa viagem.
Clube das Mulheres Escritoras
Um instante
Por Maria Bravo
Mas quando a música parou, algo em cada um deles tinha mudado. Uma pequena dobra no dia. Uma pausa luminosa. É que às vezes, no lugar mais comum, acontece um instante raro — uma beleza que nos encontra.
Era uma terça-feira igual a tantas, não fosse pelo som de um violino. Em pé, mesmo na entrada da estação, uma rapariga tocava de olhos fechados. Os dedos desenhavam no ar uma melodia que não pedia nada — só ouvidos abertos. Não era virtuosa, mas havia nela algo puro. Um lamento doce. A música deslizava pelo ar fresco, interrompendo por breves momentos o ritmo apressado do mundo que ali se cruzava. Era como se se abrisse uma fresta no mundo.
Marta acordara desanimada. Ultimamente, todas as manhãs lhe pareciam campos de batalha. Dois filhos, um marido ausente (mesmo quando presente) e uma rotina que já nem ela fingia ser equilibrada. Aquele amanhecer não tinha sido diferente: torradas queimadas, mochilas trocadas, o mais novo com febre e o mais velho a gritar que não queria ir à escola. Marta saíra sem se despedir, deixando o marido a segurar as pontas. O corpo seguira em frente, é certo, mas a cabeça ficava para trás, presa nos gritos matinais. Tinha os olhos pesados, o cabelo apanhado à pressa e um nó no peito que já não se desfazia com uma chávena de café. Quando ouviu o violino, Marta parou. Não queria. Era só mais um dia. Mas os dedos daquela jovem pareciam tocar um fio invisível dentro dela. Sentou-se num banco de pedra, de casaco aberto e carteira no colo. Não chorou. Mas pensou. Pela primeira vez em semanas, pensou em si. Pensou na faculdade, quando ainda lia poesia antes de dormir. Pensou nos sonhos de ser jornalista, nos cadernos cheios de ideias. O violino lembrava-a de que um dia tivera nome — e não apenas função, como tantas vezes sentia apenas ser.
Domingas observava mais do que era observada. Sempre tinha sido assim, mas agora mais ainda. Dois anos antes, num maldito acidente de viação, emudecera. No seu coração, vivia agora um pacemaker. As palavras, essas, continuavam a existir dentro de si, completas e nítidas, mas ficavam-lhe presas atrás da boca. Naquela manhã, saíra mais cedo do pequeno quarto em que vivia, generosamente cedido pela associação de emergência social que a alimentava diariamente. Gostava de andar a pé, de ver o mundo desde a margem em que o acidente a condenara a viver. Quando ouviu o violino, estacou. Encostou-se a uma parede e fechou os olhos. O sol tocava-lhe o rosto com ternura. Recordou-se da mãe a cantar ao espelho. De si mesma a aprender piano com uma freira paciente, quando ainda vivia em Cabo Verde. Agora, registava tudo num caderno, mas ninguém lia. Quem tem paciência para ouvir quem não fala? Pegou na caneta e escreveu: «Esta música entende-me».
Joaquim saiu de casa com o cão, Tobias. Fechou a porta com duas voltas na chave e três no coração. Não gostava de deixar a oficina sozinha, esse espaço pequeno no qual as tábuas falavam com ele e o cheiro a madeira lhe fazia companhia. Mas o banco de jardim que construía precisava de verniz, e, se era para fazer, fazia-se bem feito. Atravessou o bairro como quem atravessa uma ponte antiga. Havia meses que não apanhava o comboio. No bolso do casaco de sempre, que a esposa lhe oferecera uns anos antes, levava uma lista escrita a lápis. No olhar, a leveza de quem acredita que as mãos ainda podem consertar o mundo. Acordava cedo por hábito, não por vontade. Com setenta e quatro anos, precisava de sentir que ainda servia para alguma coisa. Desde que Antónia morrera, a casa parecia maior e mais vazia. O silêncio da casa pesava-lhe mais do que as ferramentas. Precisava de encontrar tarefas para justificar os dias. Ao chegar à entrada da estação, ouviu o violino. Parou. Lembrou-se dos dias em que dançava na cozinha com Antónia, ao som do rádio. Sorriu. Aproximou-se da rapariga e deixou cair uma moeda no estojo aberto. E por um momento foi como se alguém lhe dissesse que o tempo ainda lhe pertencia.
Malik pedalava rápido, mas estava atrasado. Respirou fundo entre semáforos, a mochila pesava mais do que devia. A aplicação mostrava três entregas pendentes e uma que estava já atrasada. Tinha fome e frio. O casaco rasgara-se na manga. Chegara do Bangladesh há quatro anos. Em casa, lá longe, o pai vendia peixe e a mãe cozia pão com areia quente. Aqui, Malik pedalava entre prédios que não conhecia, entre rostos que não o viam. Ia a passar em frente à estação quando ouviu o som. Não devia, mas abrandou. O tempo esticou-se, como se os ponteiros se rendessem à melodia. Virou o rosto, desacelerou. Dez segundos. Vinte. Travou. Depois voltou atrás. Pensou no irmão mais novo, que também gostava de violino, e a quem prometera comprar um. Saltou da bicicleta e, sem pensar, tirou uma moeda do bolso, suada de tanto andar. Encontrou o olhar da violinista. Ela sorriu, ele também. E ali, no meio do caos, Malik sentiu-se visto.
Nenhum dos quatro falou com os outros. Nenhuma palavra. Nenhum nome. Apenas um momento. Mas quando a música parou, algo em cada um deles tinha mudado. Uma pequena dobra no dia. Uma pausa luminosa. É que às vezes, no lugar mais comum, acontece um instante raro — uma beleza que nos encontra. E a jovem com o violino? Talvez nunca mais voltasse àquela estação. Talvez mudasse de lugar. Talvez seguisse apenas o seu caminho. Mas naquele dia, sem saber, tinha sido vínculo. Depois, o mundo retomou a sua pressa.
Guerra em Portugal
por Maria Francisca Gama
Esperas que esteja a sonhar, crês, com esperança (e ousadia, só isso te permite ter fé) que ele poderá estar a imaginar qualquer coisa boa, melhor, e aí, nesse terreno que não tem armadilhas, nem inimigos, vive calmo, é criança, não tem medo.

Nas noites que se fazem manhãs sem que por isso tenhas dado conta, acordas sobressaltada, destrambelhada como se a inércia do sono te pudesse ter desconcertado mais do que a inquietude da vigilância permanente. Há uma corrente elétrica, impossível de ser apagada ou desacelerada que te atravessa o corpo, é o instinto de sobrevivência, agigantas-te de imediato, o corpo curva-se para se assemelhar a um quadrúpede, não te vês ao espelho há meses, mas acreditas que, nesse esgar físico, pela estranheza, aumentas as hipóteses de afugentar quem não se aproxime por bem. (Não te recordas do que é o bem, nem de olhar para alguém e vê-lo.) Tens a mão direita junto ao seu peito, sentes-lhe a respiração, retomas a tua – debilitada pelo pó, condenada pela passagem do tempo ali, naquelas condições – porque ele está bem. Com a mão esquerda, seguras-lhe a cabeça, fizeste-a concha almofadada, guardiã do seu descanso. Esperas que esteja a sonhar, crês, com esperança (e ousadia, só isso te permite ter fé) que ele poderá estar a imaginar qualquer coisa boa, melhor, e aí, nesse terreno que não tem armadilhas, nem inimigos, vive calmo, é criança, não tem medo. De seguida, num embalo que vem desgovernado – já tu achavas que eras mais gentil contigo, é normal adormecer, todos têm de dormir –, chega-te impiedosa, pesa-te nos ombros, a culpa, a certeza de que erraste, de que não podias ter vacilado. Desta vez correu tudo bem, foram só umas horas, o sol ainda não torra e a aldeia não parece deambular na sua habitual chinfrineira, terão sido apenas umas horas, ele está bem, mas e se da próxima vez acordares e ele não estiver aqui? Ou estiver e não lhe sentires a pulsação? Se não o guardas tu, quem o protege disto para onde o trouxeste? Olha-lo e espanta-te como cresce, como qualquer coisa ainda cresce e não é ódio nem dor: o teu filho é flor de pouco sustento, é fruto de pobreza, não tem como receber água, nem lugar para sugar nutrientes. Pequenino, mais pequeno do que tu querias que ele fosse, mas, ainda assim, vivo, a subsistir, a mamar do teu peito enquanto tu rezas que não seja fonte esgotável. O tempo passa, tens memória do que esperavas para ele, do quanto o desejaste, de como não te coube coragem para desistir dele – depois de tanto tentarem, depois de tanto o sonharem – ainda que tu tenhas alargado e que a guerra fosse certa e soubesses estar a trazê-lo, fosse lá ele como fosse, rapaz ou rapariga… Para aqui. Foi insensatez ou egoísmo? Também acreditaste que as coisas iam melhorar, que não chegava cá? Um dia acordaste e correste para a casa de banho. Sentias o chão incerto e baloiçavas à mercê de uma trepidação que o teu marido dizia não sentir. Agachaste-te para vomitar e ele apareceu com um sorriso que, se estivesses doente, te deixaria magoada. «Será que é desta?» Na televisão ouve-se que vem aí uma guerra; no dispositivo que ele guardava, secretamente, na mesinha de cabeceira, ansioso para que aquele dia chegasse, vê-se que vem aí uma pessoa, a vossa. Beijam-se e envolvem-se felizes, são o centro do Mundo, baixam o volume da televisão para que nada estrague aquele momento. Não querem saber da guerra, não há nada que vos impeça de serem pais, de serem família, de serem o que merecem, porque tu sabes que a vida é assim, que temos as coisas para as quais trabalhamos, que a sorte protege os audazes e que nascer aqui é a maior delas, porque a guerra não chega cá, porque somos dos países dos que se desenvolveram, dos que não têm porque temer uma coisa dessas. E agora estás escondida. Tinhas razão que era um menino, lembras-te de o sentir na tua barriga, a pontapear-te e a encaixar-se mesmo em cima da tua bexiga e de dizeres ao teu marido que ele teria um companheiro para o futebol: não queriam saber o sexo, não interessava para nada, esperavam que a alegria sem exigências, a aceitação sem reservas, a abertura total dos vossos corações trouxesse coisas boas. Trouxe a melhor. Ainda que o pai – teu amado marido – não tenha visto. Foi chamado para vos defender. Está lá ao fundo, lá em cima, enquanto tu estás aí, a guardar o vosso maior sonho, que tem as perninhas e os braços escondidos num pano sujo que não tens como lavar. Não sabes quanto tempo passou, nem tens data de término a que te agarrar: contas os meses pelas mudanças que vês no corpo do teu bebé, pelo que te lembras de ler nos livros que a tua mãe te emprestou quando lhe disseste que ia ser avó, pelas palavras sussurradas que as outras mulheres, aí, vão trocando. Um dia vais ter de te fazer à estrada, mas para isso tens de ver caminho. Não há caminho na guerra – esperamos a paz – para o vosso filho. (E se fosse connosco? Em Portugal?)
Debaixo da terra
Por Rita Cruz
Com o tempo, um caminho vingou e o outro desapareceu. Um, como se sempre ali tivesse estado, outro como se nunca tivesse existido. E nele, o segredo escondido, tapado por camadas de vida a respirar por cima.
“Cartography is another name for stories told by winners. For stories told by those who have lost, there isn’t one.” Elif Shafak, The Island of Missing Trees
Da janela do meu antigo quarto, escondido que está debaixo da vegetação basta e despenteada, não se vê o caminho que ali houve em tempos. Só eu o sei, guardiã do segredo que descansa no útero da terra chovida, nevada, seca e de novo regada. Terra fértil onde plantei a semente da mentira que me empoderou, e que no meu espírito vincou raízes e ramificou.
Só eu é que fazia esse caminho, entre casa e escola, pouco mais do que um estreito risco esventrado no mato e aberto nas silvas. Mas logo no dia a seguir comecei a trilhar outro. Todos os dias, a ir e a vir. A pé e de bicicleta, a esmagar e a cortar, a desbastar com as mãos. Não se faz um caminho em poucos dias. É preciso paciência, perseverança. Um bocadinho todos os dias, ao longo de anos, décadas. É preciso ter sorte e contar com a vontade do tempo.
Por isso me tornei professora de História, em vez da médica que antes queria ser. Segui uma obsessão, descoberta num útero de terra, e troquei uma ambição por outra. Mergulhei nos livros, não para aprender o que diziam, mas maravilhada pela descoberta do que escondiam, ao dizerem o que diziam. A elaborada argúcia com que se tapavam uns caminhos e se abriam outros, como o visível se tornava invisível, apenas perceptível na esquina das palavras que eu perseguia. Estudei, num propósito só meu, paralelo e silencioso, o respeito e admiração por ogres eternizados em retratos bordados e estátuas de bronze, saneada a sua verdade, ficcionado o seu heroísmo. Descobri a facilidade com que se silenciam as vítimas, e imaginei rostos perplexos de injustiça, a atravessar os séculos debaixo da terra, asfixiados em caminhos desaparecidos. Talvez algumas o merecessem. Sei que algumas o mereceram.
Dediquei-me à História porque intui nela o refúgio dos vencedores, onde me quero incluir, forjada na sua língua e nos seus ídolos, limpa de terra nas unhas e de sangue nas pernas, servida em livros coloridos para ser verdade desde a mais terna infância. Soube que nela os assassinos inventam a glória em narrativas forjadas e as vítimas desaparecem num fundo sem alma. Eu sou a vítima tornada assassina e a História é a minha voz e o meu aconchego.
Há anos que a ensino, como se quer que ela seja ensinada, a adolescentes desinteressantes e desinteressados. Por vezes aparece uma aluna que pergunta e desconfia — quase sempre mulheres, talvez porque ao escassearem nas páginas lhes ocorram dúvidas e sacrilégios — que se taparam caminhos e se esconderam verdades em úteros de papel, para que as páginas digam o que dizem, em vez de outras coisas alternativas, algumas ao contrário.
São poucas as vezes, mas inquietam-me. Criam um eco na sala, um início depois do fim das palavras que ameaça demolir o sólido edifício que habito, quebrando paredes e revelando a História como um casulo onde a humanidade se transforma, e de homo sapiens emergem outras espécies, homos-patriota, por exemplo, criatura livre dentro de uma jaula, de magníficas asas abertas à servitude de uma bandeira. As dúvidas delas, nas raras vezes que as têm e vocalizam, fazem-me temer pela força das narrativas, pela eternidade das verdades estabelecidas. Mesmo tão raras, mesmo as dúvidas tão facilmente esmagadas pelo peso dos calhamaços com nomes inscritos a ouro, aterra-me a descoberta do que um dia se cobriu de terra, e temo a possibilidade de um futuro onde o passado se conte de forma diferente. A História deve ser imutável, eterna.
Olho para o caminho que não se vê nem se adivinha desta janela, aquele que só eu trilhava na vila. O vento forte despenteia ramos e folhas e os arbustos sussurram palavras que chegam até aos vidros, se esgueiram pelas frestas, me arrepiam a pele. Nada é eterno.
Um dia, há muitos anos, começo a abrir um novo caminho entre casa e escola, e a tapar o que existia. Uso igual apuro a destruir a mata aqui, como a espalhar adubo e abraçar a terra ali. Galgo esse novo caminho todos os dias. As silvas rasgam-me a pele e agarram-se às saias, os meus sapatos sujam-se na terra ainda pouco pisada, na água acumulada em poças macias. Porque vens por ali? ouço, ao chegar à Escola. Angustio-me sem razão, porque sou socialmente inapta e não tenho amigos, e a pergunta não é uma pergunta, mas o começo de uma chacota que termina com um dedo na testa e as palavras tontinha de todo.
Com o tempo, um caminho vingou e o outro desapareceu. Um, como se sempre ali tivesse estado, outro como se nunca tivesse existido. E nele, o segredo escondido, tapado por camadas de vida a respirar por cima.
A História reconfortou-me. Percebi-a construída numa acumulação de caminhos desbastados a golpes de palavras e imagens, com vítimas esmagadas no fundo das páginas, tal como a minha debaixo da terra. O meu primeiro crime não foi perfeito, mas vingou. Nele, o meu único mérito foi a minha invisibilidade de rapariga socialmente inapta.
Quando ele não apareceu na escola no dia seguinte, alguém disse que o tinha visto na paragem de autocarro, e não fui eu. E o condutor do autocarro, quando lhe perguntaram, disse por iniciativa própria que era provável que sim, que um senhor daquela estatura, com aquela descrição, tivesse ido a caminho da capital. Mas havia muitas paragens até lá, incluindo lugares problemáticos, onde abundam imigrantes e tudo pode acontecer, Se é que me entendem… e onde ele teria saído não sabia. Ei-la, a vontade do tempo em meu socorro.
A mim, ninguém perguntou nada e fiquei quieta, a tratar dos meus caminhos, a trabalhar a minha parte da narrativa. As possibilidades tornaram-se verdades, enquanto as urzes cresciam de um lado e morriam do outro, à conta de sangue nas pernas e nas mãos, de meias enlameadas e saias rasgadas. A verdade escolhida solidificou como o chão, na certeza do imigrante sedento de violência. E, depois de encontrarem a tão respeitável professor revistas indecentes nas gavetas da cómoda, enterradas debaixo das cuecas, a vontade de saber que imigrante ao certo teria feito sabe-se lá o quê com ele. O culpado nunca teve rosto, só uma categoria abrangente de culpabilidade certa.
No dia em que o professor faltou, para nunca mais aparecer, cheguei tarde à escola. Tinha os olhos vermelhos de não ter dormido, cortes nos braços, nódoas negras nas pernas e o andar lento de uma vagina rasgada. Todos viram, ninguém reparou e nunca ninguém desconfiou. Só um ausente e desinteressado, Porque vens por ali?, onde insisto em colocar um ponto de interrogação mesmo a saber que nunca foi uma pergunta. A História escreveu-se assim:
• Quando ele se ofereceu para me acompanhar a casa pelo caminho, simpático e prestável, de olhar gentil e preocupado, porque o dia era cinzento e escurecia antes da noite, alguém o viu na paragem de um autocarro.
• Quando a meio, sozinhos, ele me agarrou e atirou ao chão, e me penetrou com uma faca de carne, o motorista recebeu dele o bilhete, em mãos que não acusavam transpiração, e viu-o entrar, com pernas que não pingavam sémen.
• Quando deixei de estar quieta, arrebatada de dor e pasmo, pela verdade tão bem escondida, pela mentira em que tão profundamente tinha acreditado, e lhe rasguei o crânio com uma pedra afiada, um imigrante sem nome nem rosto tinha-o forçado a sair numa paragem
• Quando cavei um buraco e o enterrei, ainda ele respirava, o professor e o seu paradeiro final eram engolidos num caleidoscópio de violência injustificada, perpetuada pelo culpado perfeito.
A verdade ficou debaixo de um metro de terra e eu, como o louco a quem a psiquiatria fascina, entreguei-me ao estudo e ensino da História. Entusiasmei-me pela gloriosa ficção do vencedor, imaculada no silêncio das vítimas. E testei, uma e outra vez. O silêncio da vítima.
Mas hoje, a tantos anos de distância e sucesso, ouço perturbada o sussurro do vento, e vejo as máquinas ao longe. O terreno daquele caminho que desapareceu, que não se vê, nem se adivinha, foi vendido. Vão construir nele um centro comercial. Vão escavar a terra para construir os alicerces. Ainda não começaram, mas as máquinas já ali estão e talvez em breve encontrem essa primeira vítima, a única que não planeei. A única onde fui fraca e quase vencida. Talvez então, se ainda se lembrarem, voltem a perguntar-me, Porque ias por ali? E, desta vez, seja mesmo uma pergunta. E essa leve a outras.
Se assim for, se a minha desconfiança estiver certa e a História não for refúgio eterno da mentira, fica aqui a minha vingança: a denúncia de que não estou sozinha, e não é justo, se a minha for revelada.
Relembramos que o número dois da revista anual do Clube ainda está disponível e pode ser encomendado através do email clubedasmulheresescritoras@gmail.com
Tão precioso esse instante! Tão luminoso!